O circo demorava a aparecer na cidade. Às vezes passava mais de ano sem dar sinal de vida. Mas quando ele surgia, Taperoá vivia dias de festa. Acompa-nhando o palhaço, revezavam-se equilibristas, mágicos, bailarinas e homens da perna-de-pau. Os integrantes da trupe eram sempre homens fortes e mulheres belíssimas – pelo menos na imaginação daquelas crianças. “As moças deviam ser muito feias, coitadas. Mas na minha cabeça eram princesas”, lembra Suassuna.
O circo, os folhetos de cordel cantados na feira, o duelo de repentistas… A infância do menino Ariano em Taperoá eternizou-se na obra do imortal da Academia Brasileira de Letras. É no contexto de uma pequena cidade do interior que se passam praticamente todas as suas peças e vivem quase todos os seus personagens.
Aos 70 anos, Suassuna ainda escreve sobre os encantamentos da infância. Um deles era o circo. Mesmo sendo sempre modestos os circos que chegavam a Taperoá. Nenhum deles tinha bicho. Talvez por causa disso, até hoje Ariano não goste de animais no picadeiro.”Um bicho nobre como o tigre, por exemplo, sendo obrigado a subir num tamborete e pular para não sei aonde, eu acho uma falta de respeito, uma desmoralização”, repudia.
O menino Ariano, então com sete anos de idade, tinha uma tristeza quando o circo chegava: não poder acompanhar o palhaço Gregório. A mãe, dona Ritinha, não deixava seu filho seguir o palhaço com as crianças pobres do lugar.
Os meninos que ajudavam o palhaço a divulgar o circo recebiam como pagamento o direito de entrar no espetáculo de graça. Cada pequeno ajudante era assinalado com uma cruz de cinzas na testa. Quem tinha o sinal, não precisava comprar o ingresso. Mas Ariano era o menino “aristocratazinho” da cidade – na escola, as crianças falavam que ele era filho de rico, o que o incomodava bastante. E se não podia ajudar o palhaço, não recebia na testa a abençoada cruz feita de cinzas.
“Minha mãe dizia que pagava o meu ingresso. O problema não era esse. Eu queria era participar da festa”, relembra o menino, seis dÉcadas depois.
Todo aquele universo vivido no sertão iria marcar para sempre a sua vida. O circo, do ponto de vista do teatro, foi tambÉm a primeira grande influência de Ariano Suassuna. Foi nele que assistiu as primeiras peças. Eram melodramas como O Terror da Pedra Morena e A Ladra, que o deixavam impressionado.
Mas as encenações tambÉm chegavam a Taperoá com as companhias de teatro que Às vezes visitavam a cidade, sendo a mais famosa delas a de Barreto Junior, trazendo comÉdias.
E assim, nada na obra de Suassuna É por acaso. Não era apenas o circo que integrava esse rico universo popular vivenciado pelo escritor. Foi em Taperoá que ele assistiu À primeira peça de mamulengo (teatro de bonecos) e ao primeiro duelo de repentistas. A dupla de cantadores que encantou aquele menino imaginoso era formada por Antônio Marinho e Antônio Mari-nheiro. Nesse mesmo dia, ele ouviu pela primeira vez um folheto de cordel, cantado por Marinho.
Tudo lhe tocava. As histórias ouvidas eram sempre recheadas de humor e espontaneidade – características que começaram a aparecer na obra de Ariano desde os primeiros escritos. Um bom exemplo disso está na peça A Pena e a Lei, uma das mais importantes do autor.
O personagem principal do primeiro mamulengo que assistiu, num mercado popular de Taperoá, era um negro chamado Benedito, que, de tão valente, dava uma pisa (surra, no idioma nordestino) na polícia. Curiosamente, no primeiro ato de A Pena e a Lei aparece esse mesmo Benedito, fazendo as mesmas travessuras.
OBRA TALHADA À MÃO
Ariano Suassuna nÃo tem pressa. Escreve e reescreve várias vezes a mesma coisa. Normalmente, escreve uma ou duas versões À mÃo. Depois, copia À maquina. Corrige. Depois copia À mÃo, de novo, e Às vezes, depois disso tudo, desmancha e recomeça do zero. Foi assim com A Pedra do Reino, que levou 12 anos para ser concluído. E assim tambÉm está sendo escrever um novo romance, no qual Ariano vem trabalhando desde 1981.
Recentemente, ele abandonou o que já tinha produzido e recomeçou o livro como qual vem sonhando desde que se tornou escritor e no qual começou a trabalhar há 16 anos. O novo livro retoma toda a obra de Suassuna, inclusive peças inÉditas em livro, e traz de volta personagens marcantes, como o Quaderna, de A Pedra do Reino e Conchambranças de Quaderna.
“É altamente penoso, difícil, duro o trabalho de colocar em ordem, de uma forma literária razoável, as visões, os sonhos e quimeras que me perseguem desde menino. Por outro lado, inventar, sonhar É um dos momentos mais fortes da festa que, para mim, É a criaçÃo literária”, observa Suassuna.
Mesmo ocupando o cargo de Secretário de Cultura de Pernambuco, ele reserva parte de suas manhÃs a transformar em palavras as visões, sonhos e quimeras.
Ariano tem o costume de revisitar as suas obras. Um bom exemplo É a peça Uma Mulher Vestida de Sol. A primeira versÃo, ele escreveu em 1947, quando tinha apenas 20 anos. A segunda versÃo foi feita dez anos depois. Neste texto ele fez algumas adaptações para a publicaçÃo, pela editora da Universidade Federal de Pernambuco. Agora, Ariano está retomando a peça para fazer uma terceira versÃo. “Eu acho sempre que posso fazer melhor”, explica o insatisfeito e exigente escritor.
Na nova versÃo será incluída A História de Amor de Romeu e Julieta, a mais recente peça do autor, em cartaz no Recife. Dessa fusÃo sairá, segundo antecipa ao Pensar, “uma tragÉdia em duas partes”.
AtÉ hoje, Suassuna se nega a escrever em computador. As histórias estÃo em sua cabeça, que considera o verdadeiro computador. Ele se orgulha de nunca ter perdido uma única linha de sua criaçÃo por causa de alguma “pane de rede”.
A máquina de escrever É o máximo de tecnologia a que se permite. Tem necessidade de escrever À mÃo e nÃo entende como as pessoas conseguem criar um poema olhando para o computador. “Bater À máquina É bom para corrigir, já que você fica com uma visibilidade maior. Mas depois eu volto a escrever À mÃo para sentir o prazer de escrever”.
Ariano Suassuna acredita na inspiraçÃo. E se considera um autor inspirado. Para ele, só depois da revelaçÃo É que surgem a razÃo e a reflexÃo. “O que eu considero inspiraçÃo É tudo aquilo que parte da noite criadora da vida prÉ-consciente do intelecto”.
Durante a madrugada, quando nÃo está dormindo mas ainda nÃo acordou direito, surgem esses momentos de inspiraçÃo. O autor tem sempre papel e caneta na cabeceira e costuma se levantar no meio da noite para fazer anotações. No dia seguinte, começa a desenvolver os sonhos. Às vezes, o problema de um personagem, que Suassuna passou o dia inteiro tentando inutilmente resolver, É solucionado quando ele dorme. Outras vezes, um poema inteiro aparece durante o sono. Como o soneto Sonho, que o Pensar publica pela primeira vez (veja reproduçÃo À esquerda, com ilustrações do autor).
CAMA DE LEITURA
O livro, para Suassuna, sempre foi objeto sagrado. O prazer da leitura tomou conta daquele menino desde que foi alfabetizado, aos cinco anos de idade, em casa, pela mÃe, dona Ritinha, e pela tia Maria das Neves Dantas Villar. O prazer É tanto que atÉ hoje ele faz questÃo de deitar para se deliciar com as aventuras e os dramas que surgem dos livros. No escritório, ele colocou uma cama. É nela que ele retoma os seus hábitos de infância, enquanto nÃo está escrevendo. O escritório fica em sua própria casa. É um pequeno quarto, que alÉm da cama tem duas mesinhas: uma com uma velha máquina Olivetti e outra onde ele costuma escrever a mÃo.
Suassuna despertou para a literatura atravÉs da biblioteca que herdou do pai. O governador JoÃo Suassuna era um leitor de qualidade. NÃo faltavam exemplares de Eça de Queiroz e de Euclides da Cunha. Portanto, a influência do pai, que morreu quando o filho tinha apenas três anos de idade, passou a ser indireta, mas nem por isso menos marcante. “A leitura me dava uma alegria muito grande e naturalmente eu queria ser como aquelas pessoas”, revela.
AtravÉs d’Os Sertões, de Euclides da Cunha, ele passou a admirar a figura de Antônio Conselheiro. No capítulo de A Pedra do Reino chamado Almoço do Profeta, o romancista chega citar trechos inteiros dos sermões de Conselheiro. É bom lembrar que Quaderna – personagem central desse romance que o próprio autor considera a sua obra-prima – tambÉm quer ser profeta, como foi Antônio Conselheiro, mas nunca conseguiu ser puro o bastante para tornar-se um pastor de almas.
“Conselheiro foi talvez a figura que mais me marcou, porque considero Canudos o episódio mais significativo da história do Brasil. Junto com o Quilombo dos Palmares, o Arraial de Canudos foi o único lugar onde nosso povo se expressou politicamente”, acredita Ariano.
Mas a influência nÃo foi só na formaçÃo política. Foi lendo os livros do folcloristas cearense Leonardo Mota sobre cantadores e folhetos de cordel que esse universo popular começou a ser valorizado pelo menino que aos sete anos já era um devorador de livros. “Eu talvez, naquela Época, nÃo desse a mesma importância aos cantadores, se eu nÃo visse que eles eram objetos de livro”, observa.
Auto da Compadecida É baseado em três folhetos da literatura de cordel. Curiosamente, os três estÃo citados na obra de Leonardo Mota.
Os livros de Monteiro Lobato tambÉm marcaram muito a infância do escritor. Principalmente porque o cenário das reinações de Narizinho, Pedrinho & Cia. era um sítio que Suassuna achava muito parecido com as fazendas em que vivia. “Emília era para o Monteiro Lobato o que JoÃo Grilo (herói do Auto da Compadecida) É para mim”, compara.
Mas os romances de aventura eram os prediletos. Ainda hoje Suassuna relê com grande encanto Scaramouche, de Rafael Sabatini. “Eu acho que foi atravÉs das histórias do grupo de teatro ambulante do livro que eu tive o meu primeiro encantamento com o teatro”, revela.
Foi com apenas 12 anos que Ariano teve coragem de escrever o seu primeiro conto. A trama tinha três personagens e todos morriam. Um deles chegava em casa, pegava a mulher com outro, matava os dois e se suicidava. “Que dramalhÃo desgraçado… NÃo podia ser pior”, observa o crítico severo.
Conheça melhor Ariano
Origem das histórias
“Todas as histórias contadas por mim são recriações de histórias populares ou de histórias pessoais. Eu tinha alguns encantamentos na infância. Entre os esses, os mais fortes eram o circo e a leitura. Todo esse mundo renasce anos depois quando estou escrevendo um livro. Como escritor, eu sou aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que ele deixou”
Desenvolvimento da narrativa
“Para mim é muito importante a presença de um narrador, como o Quaderna, de A Pedra do Reino. Quaderna tem coisas do autor, mas não é ele. É o próprio narrador. Isso me facilita bastante durante o desenvolvimento do livro. Enquanto eu estava escrevendo esse livro, parei em vários momentos porque percebia que o narrador se confundia com o próprio autor, no caso, eu.”
Criação dos personagens
“Meus personagens ora são recriações de personagens populares e de folhetos de cordel, ora são familiares ou pessoas que conheci. No Auto da Compadecida, por exemplo, estão presentes o Palhaço e João Grilo. O Palhaço é inspirado no palhaço Gregório da minha infância em Taperoá. Já o João Grilo é o típico nordestino ‘amarelo€, que tenta sobreviver no sertão de forma imaginosa. Costumo dizer que a astúcia é a coragem do pobre. O nome dele é uma homenagem ao personagem de cordel e a um vendedor de jornal astucioso que eu conheci na década de 50 e que tinha este apelido.”
Rotina e cotidiano
“Agora estou reservando as manhãs para escrever. Assumir a Secretaria de Cultura me atrapalhou muito no primeiro momento. Cheguei a interromper o livro que estou escrevendo. Nos primeiros meses, não acrescentei uma única linha. Mas consegui retomar. Tenho que concluí-lo. Para mim vai ser uma frustração terrível não terminar o livro com o qual sonhei a vidatoda. Aposentei-me da universidade para isso.”
BIBLIOGRAFIA
ROMANCE
A história de amor de Fernando e Isaura – Ed.Bagaço, 1994
O sedutor do Sertão (1962)- inéditoA pedra do Reino (1971)- José Olympio Editora
A história do rei degolado nas caatingas do Sertão: ao sol da onça caetana (1976)- José Olympio Editora
TEATRO
Uma mulher vestida de Sol (1947) – Editora da UFPE
O desertor de princesa (1948) – Inédita
Os homens de barro (1949) – Inédita
Auto de João da Cruz (1950) – Inédita
Torturas de um coração (1951) – Inédita
O arco desolado (1952) – Inédita
O castigo da soberba (1953) – Seleta em Prosa e Verso
O rico avarento – Seleta em Prosa e Verso
O Auto da Compadecida (1955) – Editora Agir
O casamento suspeitoso (1957) – José Olympio Editora
O santo e a porca (1957) – José Olympio Editora
O homem da vaca e o poder da fortuna (1958) – Seleta em Prosa e Verso
A pena e a lei (1959) – Editora Agir
Farsa da boa preguiça (1960) – José Olympio Editora
As cochambranças de quaderna (1988) – Inédita
A história de amor de Romeu e Julieta (1996)- Inédita