TRADIÇÃO
Realidade e ficção cavalgam juntas
por DIANA MOURA BARBOSA
Enviada especial
Dizer que história e ficção se misturam na
Cavalgada da Pedra do Reino seria muito pouco
para descrever o nível de intrincamento entre
literatura e realidade que predomina no evento. A
cavalgada, que aconteceu no último final de
semana, em São José do Belmonte, a 400 Km do
Recife, tem suas origens no livro A Pedra do Reino,
de Ariano Suassuna. O texto, que começou a ser
escrito há 40 anos e foi lançado em 1971, é
baseado numa narrativa histórica que descreve o
Movimento da Pedra do Reino. Em 1838, um grupo
messiânico e sebastianista, esperando a volta de
Dom Sebastião, rei de Portugal, causou a morte de
83 pessoas. Eles acreditavam que, quando
voltasse, o rei ressuscitaria, em melhores
condições, todas as pessoas que banhassem a
Pedra Bonita com seu próprio sangue. O
movimento foi violentamente reprimido por tropas
enviadas por fazendeiros da região.
Nos dias atuais, cessado o fanatismo, a cavalgada
é montada para relembrar os fatos que
aconteceram há 160 anos. Apesar da distância
temporal dos sacrifícios e do massacre, o evento é
totalmente impregnado pelo espírito místico que
envolveu o Movimento da Pedra do Reino. Não que
os cavaleiros ainda mantenham as mesmas
crenças, mas há um pano de fundo meio
cenográfico e misterioso que deixa inebriados os
participantes da cavalgada. Por um momento, é
como se se rompessem as barreiras do tempo e
fragmentos do passado estivessem de volta. Não
seria exagero comparar o que ocorre em São José
do Belmonte com a mitologia grega. Há uma troca
de papéis entre história, atos heróicos e mitos, um
alimentando o outro, muito semelhante com o que
havia na Grécia antiga.
Um testemunho deste contínuo trançado entre
ficção e realidade é dado pelo escritor e secretário
de cultura Ariano Suassuna. Como a Cavalgada da
Pedra do Reino tem em sua base os episódios O
Caso da Cavalhada e O Quarto Império, narrados no
seu Romance d’A Pedra do Reino, o escritor foi
proclamado Imperador da Pedra do Reino. Além do
título concedido pela associação cultural, Suassuna
também revela que sua atuação na cavalgada
confunde-se um pouco com um de seus
personagens. “Às vezes, até eu misturo um pouco
ficção e realidade, e acabo entrando um pouco na
pele das pessoas que crio na literatura. Por
exemplo, há um personagem no novo livro que
estou escrevendo, que é um escritor que se veste
de preto, vermelho e usa uma insígnia. Quando
percebi, eu estava me vestido com as mesmas
coisas e também usando um medalhão, é com
esse traje que vou para a cavalgada”, declara.
Em nenhum momento, entretanto, os
acontecimentos da cavalgada podem ser
considerados apenas uma encenação, um teatro.
Há, por parte dos cavaleiros e dos organizadores,
um enorme respeito por toda a história. É admirável
a seriedade com que os sertanejos tratam os fatos
acontecidos em 1838 e sua recriação atual. Toda a
cidade se prepara para receber a cavalgada.
Bandeiras de estilo medieval, arcos e faixas
ornamentam São José do Belmonte. Às 5h, na
manhã do domingo, os cavaleiros começam a
chegar à praça da matriz. Dantas Suassuna, filho
de Ariano e rei da cavalgada, é saudado pelos
participantes. “Bom dia, meu rei”, cumprimentam.
Antes do dia raiar, cavaleiros, vaqueiros e curiosos
lotam a praça. Às 6h, é anunciada a partida. Ao
som da banda de pífanos o grupo se despede da
cidade.
Jornada aos encantos e poesia da Pedra do Reino
O cenário não poderia ser mais adequado a uma
cavalgada: o Sol nascendo, o pátio de uma igreja,
um padre para abençoar o grupo, uma banda de
pífanos tocando, pessoas reunidas para se despedir
e desejar boa sorte aos cavaleiros e às poucas
amazonas. Foi assim que começou a Cavalgada da
Pedra do Reino, que acontece há seis anos, no
último final de semana de maio, na cidade de São
José do Belmonte. Quando uma explosão de fogos
de artifício anunciou a partida dos cavaleiros, mas
de 250 deles já estavam reunidos. Eles largam para
uma jornada de mais de quatro horas, num
percurso de 30 quilômetros de estrada íngreme e
poeirenta.
Durante o trajeto, outros vaqueiros e cavaleiros –
alguns de primeira viagem – vão se juntando ao
grupo, que terminou com mais 350 participantes.
Em 1997, o número chegou a 800 cavaleiros. Este
ano, segundo os organizadores do evento, a seca
atrapalhou a jornada. Uma das ausências mais
sentidas foi a se “seu” Zeca Mirom. Ele é o
idealizador da cavalhada, que acontece no sábado
à tarde. Como fez uma cirurgia no rosto e não
queria tomar muito sol, evitou fazer o percurso.
Quando Ariano Suassuna perguntou se ele não
gostaria de ir de carro, o vaqueiro recusou a oferta.
“Se fosse para eu ir, preferia ir à cavalo. De carro
não tem a mesma graça”, lamentou.
Ele tem razão. Das pessoas que agüentam o
percurso, nenhuma se arrepende de tê-lo feito.
Claro que o passeio é mais duro para os que não
estão acostumados, mas o espetáculo é grandioso.
Nas quatro horas de cavalgada, os vaqueiros mais
antigos vão aboiando, soltando versos e cantando
loas. A paisagem é árida e o Sol não dá sossego,
mas os sertanejos vão oferecendo água aos
cavaleiros para tornar o caminhos mais ameno.
Fonte | Jornal do Commercio | 02/junho//98 |