AS DAMAS
Com que pode ocupar-se um menino confinado num quarto de hospital, soçobrando entre cheiros de éter e clorofórmio, a não ser aguçando os sentidos para descobrir nos pequenos acontecimentos em torno algum sentido mágico que o faça suportar a agrura dos dias?
Ei-lo a escutar os passos no corredor para identificar os visitantes. Sobretudo aquele que vem todas as tardes. À hora em que a sombra da árvore já não maltrata a cortina da janela, a que precede o toque do Angelus soluçado pelos sinos da Sé.
Vem, com o mesmo terno preto, a camisa branca com o colarinho já puído, sem gravata. Traje que o deixa, ele, o menino, um tanto sem jeito, um pouco envergonhado de ter de conviver, mesmo que por pouco tempo, com alguém cujos traços de decadência deixam-se à mostra.
Também lhe perturba aquela boca um pouco irônica, o rosto gordo, parecido com o de D. João VI do seu livro de História.
Mas, deixa-se tocar pelo respeito com que lhe fala, como a um adulto, aquele senhor de cabelos grisalhos. Comparsas naquele encontro ritual que sempre termina numa partida de damas.
Ao chegar ao quarto, nada diz. Limita-se a arrumar o tabuleiro e a perguntar se ele, o menino, gostaria de disputar uma partida de damas.
O jogo se desenrola sempre numa lentidão premeditada.
O menino manipula as pedras ensebadas, cuida-se para não sucumbir às armadilhas. O homem nem fita os olhos da criança. Apenas acompanha o itinerário das pedras, como se nada em volta o interessasse.
Aos adultos que entram e saem do quarto, acode aos cumprimentos de praxe. E permanece a jogar,
cabisbaixo.
Terminado o jogo, retira-se em silêncio.
– “O dia já se foi!u, pensa a criança. Mesmo que ainda haja o doloroso curativo por fazer e o asseio vespertino. E dá-se conta, de repente: aquela partida ganha é mais uma concessão que o homem de terno preto parece fazer à efêmera alegria de um dia de hospital…
À boca da noite, ouve passos das visitas noturnas. Passos menos enérgicos, que pesam na sua sonolência como as orações da capela logo no final do corredor. Onde aquele enorme Crucificado aponta a chaga do lado esquerdo, com a mão descarnada, que não lhe parece uma mão de jogador de damas.
Procura desvendar de quem são aqueles passos, que música é aquela que sobe do rangido dos pés pelos tacos encerados, anunciando a noite por chegar.
E acaba adormecendo.
O homem de terno preto e camisa puída volta ao quarto.
Lentamente, retira da caixa as peças do tabuleiro.
À medida que as pedras se movimentam, o menino se imagina correndo no pátio de recreio do Externato. Já não sente cheiro de éter e clorofórmio, mas o da madeira quando a lâmina da gilete já usada tira felpas do lápis.
Pressente, então, que entre os dois há mais do que um jogo de damas: um encontro no território dos sonhos.
No dia seguinte, o menino pergunta:
– “Por que o senhor anda sempre vestido de preto?a.
O homem disfarça, põe a mão na algibeira. Mostra ao menino uma medalha de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Com aquelas garatujas incompreensíveis, que nem parecem letras, nem desenhos. Ao lado da santa, observa a pequena fotografia de mulher nos seus trinta anos, cabelos curtos, numa pose parecida com a dos retratos de feira.
– “Quem é?o, pergunta.
O homem de preto desconversa, diz que está apressado, tem de fechar seu pequeno comércio, ir à benção… E assim se vai mais um dia de passos no corredor, de um jogo de damas que deixa o menino perturbado.
– “Por que ele ganha sempre do homem de preto, indiferentemente de quem começa a partida?
Indaga aos familiares sobre o sentido daquelas visitas.
Da deferência que lhe tem alguém que já vai pelos sessenta e anda sempre vestido de preto.
O pai desconversa. Diz ao filho que não sabe de quem se trata, que nas horas das partidas, ele, o pai, nunca está no hospital. Aquela é hora de trabalho e o homem de preto deve ser algum aposentado em busca do que fazer.
Todas as respostas são evasivas.
O menino pensa que aquilo pode ser uma forma de alucinação, de dias de febre.
Decide, então, organizar a caixa onde põe as peças do jogo. De um lado, as brancas; do outro, as pretas. E no meio das brancas, bem embaixo, na segunda fileira, coloca uma pedra preta.
Como de hábito, deixa a caixa em cima da mesa de cabeceira, onde também há uma Bíblia católica e uma fotografia do time do Flamengo, cuja formação termina com Joel, Rubens, Índio, Benitez e Esquerdinha.
O homem de preto chega à hora de sempre. Puxa a cadeira, pergunta ao menino se passou um bom dia.
– “Mais ou menos!o menino responde.
Sob o lençol desarrumado vê-se o curativo com dreno, a mancha amarelada, indicando que a cicatriz ainda está longe de sarar.
O homem arruma o tabuleiro.
– “Amanhã sigo de viagem, não sei quando volto .. Vim jogar essa partida, lhe dizer que desejo que saia logo daqui, desse cheiro esquisito de éter”.
Pede que o menino inicie com as brancas.
É o mês de dezembro, época de buritis. O menino, assim doente, não vai desfrutar o doce, cor de um amarelo-queimado. Diz o homem de preto que é carregado, como o arroz depequi, também da época.
Quer saber como, mais tarde, estará arrumada a caixa das damas, em que fileira ficará a peça preta, destacada das outras, como uma ovelha desgarrada.
Poderá, quem sabe, descobrir se aquele homem existe. Ou se é uma espécie de anjo negro, como que saído de um bolero de Agustín Lara.
Joga, por reflexo, sem pensar, acreditando que ganhará a partida, pelo menos a modo de despedida.
O homem mexe as pedras com seus dedos gordos, com pequenos tufos de cabelos. Quando levanta a mão, a manga do paletó revela o punho da camisa já usado e o amarelo do tempo no linho branco.
A partida termina. O alto-falante da praça toca a Ave Maria de Gounod. O locutor diz que foi às seis horas que o Anjo do Senhor anunciou Maria. Naquela luz indefinida, o homem de preto dá mão ao menino.
E se vai.
Sobre a mesa de cabeceira,a criança vê a caixa, arrumada pelo seu parceiro.
Abre-a com um certo receio, como se daquele movimento dependesse o seu destino. Revolve as pedras bem alinhadas. E acaba por encontrar, na segunda fileira, entre as brancas, a pedra preta que arrumara com cuidado.
Apesar do calor insuportável o menino adormece.
O seu sentido já não é mais atraído pelos passos no corredor.
Não tem mais sonhos. E se os tem, prefere esquecê-los.
No sonho que está dentro do sonho, o homem de preto disfarça um sorriso e aponta para o Cristo que joga
damas com ele num quarto de hospital.
A chaga da mão parece maltratá-lo. Seus movimentos são lentos e o menino julga ver uma pequena luz acompanhando o andamento das pedras.
O homem de preto sai, devagar.
O menino estranha aqueles passos mudos, o som do sino que não chega.
Não sabe se é noite ou se é dia.
As pálpebras lhe pesam e o cheiro de éter e clorofórmio volta a incomodá-lo.
A náusea em que adormece impede-o de consumar o sono dos meninos.
A sombra inquieta da árvore vela pelas horas que não passam.
Pelo movimento de cortinas que não se abrem mais…
in Diário de Pernambuco, 06/09/98