Contos Nordestinos – Memorial Pernambuco (Don Antonio)

Uma Certa Esperança

 -Você está errado, Lavian! Eu creio na bondade dos homens. Escute-me, reflita sobre o que pretende fazer.  – Você é um miserável sonhador, Vert.  – Sei que as coisas mudaram bastante e há muito aquela ingenuidade inicial não acompanha mais a humanidade, contudo, ainda existe muito amor nos corações dos homens. – Meu amigo, por que se importa tanto com eles? Já é hora de construirmos uma outra terra. Tentar fazê-la melhor do que esta que ainda existe. Aprender com estes erros e não cometê-los mais. – Mas, Lavian, é preciso um pouco de tolerância… – Minha tolerância se esgotou, Vert! Por favor, não venha tentar me convencer outra vez. Dispenso sua piedade. – Entende errado, amigo. O que sinto por estes pobres homens não se trata de piedade mas de um amor profundo, talvez o mesmo amor que nosso bom Deus sentiu ao vê-los respirar pela primeira vez, e também grande admiração pelo que eles conseguiram conquistar sendo simples mortais. – Só concordo com você num ponto, Vert, realmente valia sentir esse amor quando ainda eram homens puros, porém, hoje, não consigo ver algo que mude minha opinião a respeito da necessidade de se criar um outro mundo. – Seu coração está muito duro, amigo. Por que não tenta abri-lo durante alguns instantes? Tenho certeza que enxergaria algo que valesse a vida dos mortais. – Sem sentimentalismos, Vert. Não tenho tempo a perder com isso. – Dê-me apenas uma oportunidade, então. Uma chance para lhe mostrar algo de bom nos homens. Algo que lhe inspire, pelo menos, um pouco de compaixão. – Não insista nisso. Com todo o caos que há na Terra, todas as horrendas mortes, todos os inúmeros problemas, toda a crueldade, todo o egoísmo, todos os terríveis sentimentos que os homens alimentam, seria, praticamente, impossível você encontrar algo que realmente me sensibilizasse.  – Uma única chance não iria atrapalhar muito os seus planos, Lavian. Conceda-me esse pedido, meu amigo. – Está bem! Mas eu lhe dou apenas uma semana para conseguir esse milagre, anjo. Boa sorte, sei que você vai precisar.

– Cuidado! Vert ergueu os olhos no exato instante em que uma grande lata de tinta azul ia caindo em sua cabeça. Graças a sua recém descoberta agilidade, ele conseguiu livrar-se do objeto que chocou-se violentamente contra o chão a seus pés. Repentinamente, uma garota toda coberta de tinta abaixou a sua frente para apanhar a lata. – Sinto muito! Como sou absurdamente desastrosa. O senhor está bem? Machucou-se? – disse a dona da mesma voz do grito de alerta quase desabando sobre Vert. – Estou bem, não se preocupe. Felizmente ainda estou em incrível boa forma após tantos séculos. – Como disse? – perguntou a garota levemente surpresa. – Nada. Estava apenas delirando um pouco. Meu nome é Vert e o seu? Você é uma artista? – disse, olhando-a de cima a baixo. – Eu? Não, não. Bem, eu pinto painéis para lojas, restaurantes, esses lugares. Veja, estou quase terminando esse, se bem que precisarei comprar mais tinta agora. O painel era uma enorme paisagem de um belo e tranqüilo lago numa típica tarde de domingo. Pais e filhos sorrindo em meio a deliciosas guloseimas completavam o clima de pic nic. Vert sorriu e achou que era uma pintura muito bela e que em nada refletia o ambiente decrépito do restaurante Belo Lago, que mais parecia um desses decadentes botecos de esquina. Ele pousou os olhos sobre aquela descuidada menina, cujo rosto estava iluminado pelo orgulho de sua obra quase pronta, e pensou que, talvez, ela pudesse ser o milagre que ele buscava. – Já está anoitecendo. Pretende trabalhar durante a noite também? – Não. À noite, a visibilidade é terrível, não consigo trabalhar direito. E não quero estragar um mínimo detalhe sequer deste painel. Vou recolher logo essas coisas antes que escureça realmente. Até mais. – Ah… você ainda não me disse seu nome – voltou-se, lembrando que ainda não sabia o nome da garota. – Lídia… meu nome é Lídia – falou a garota, aos tropeços, entrando no Belo Lago com algumas latas de tinta nas mãos.

Vert não conseguiu tirar a jovem artista de seu pensamento. Dispensou várias horas da noite a uma análise do pouco contato que teve com ela. Era seu primeiro dia na Terra e não obteve muito sucesso. Ele precisava encontrar o seu milagre. Resolveu que iria tentar estabelecer amizade com sua mais recente conhecida. Lídia estava completamente coberta de tinta como no dia anterior. Vert se aproximou e iniciou a conversa. – Como vai, Lídia? – Ora, você! Ainda bem que não derrubei algo em sua cabeça hoje, não? – disse ela, com um leve sorriso maroto. Pronto! Estava erguida a ponte para uma maior aproximação. Vert passou a encontrar-se com Lídia todas as tardes. De início, ela ficara meio desconfiada e receosa, mas logo foi ficando mais à vontade e eles passavam bons momentos em interessantes conversas. Porém, o tempo estava se esgotando e Vert precisava convencer Lavian da necessidade do perdão para os mortais. Decidiu que iria expor Lídia a um encontro com Lavian. Era preciso e estava mais do que na hora. Temia por aquilo, pelo resultado. Temia por Lídia não ser suficiente, ela parecia alegre mas, na maioria das vezes, tinha um aspecto triste.

– Lídia, somos amigos? – Acho que sim. Gosto tanto de conversar com você. Temos tantas afinidades. – Você confia em mim? – Bem… sim – Lídia tentou parecer calma, mas Vert conseguiu notar sua inquietação. – Esse restaurante é um tanto desanimador, não acha? Pelo aspecto, a comida aí não deve ser muito saborosa e, se me permite o comentário, você parece estar bastante faminta. Gostaria de jantar comigo? Repentinamente, aquele ar extrovertido desapareceu dando espaço a um semblante triste e a um olhar desconfiado. Ela baixou os olhos, evitando os deles e parecia estar tremendamente desconfortável. – Não… não acho uma boa idéia. Quer dizer, não posso. Na verdade, tenho um trabalho a terminar esta noite – disse a garota bastante atrapalhada. – Tem certeza? Você não me parece muito convincente. Ora, não lhe farei mal, se é isso que teme. Para que se sinta mais segura, poderemos nos encontrar em algum restaurante mais tarde. Lídia olhou-o um pouco surpresa porque segurança foi o que menos passou por sua cabeça ao tentar recusar o convite, e sim seus planos para aquela noite. Mas olhando aquele belo rosto moreno iluminado por olhos negros tão gentis, ela achou que valia à pena algumas horas agradáveis antes de sua partida. – Está bem, então. Conhece um restaurante chamado Aquarela próximo à Praça das Estrelas? – Já ouvi falar. Parece-me uma perfeita escolha para uma artista. Combinado então às oito? – Sim, está combinado.

– Realmente a garota tem bom gosto – pensou Vert – e, com certeza, é um lugar típico de artistas. O restaurante Aquarela era um belo lugar que parecia mais ser um espaço cultural. Por todas as paredes se espalhavam quadros e fotografias e disputando espaço com as mesas, estavam inúmeras esculturas. Obras de artistas consagrados estavam misturadas a outras nem tão notórias. Lídia estava quase meia hora atrasada mas, de maneira alguma, isso perturbava a tranqüilidade de Vert. Ele desejava fervorosamente que ela justificasse a oportunidade que ele pedira a Lavian. Ele estava tão envolvido em suas divagações que nem percebeu a jovem que se aproximou da mesa. – Que bom que realmente veio. Vert olhou-a surpreso, não conseguindo reconhecer na bela moça de enormes olhos castanhos e um longo cabelo dourado, a suja e descuidada menina que ele encontrava todos os dias. – Aposto que não está me reconhecendo. Não lhe culpo, com toda aquela tinta, realmente fico com uma aparência assombrosa. – Lídia? Como você está diferente! – disse Vert, agora percebendo o já conhecido triste olhar. Lídia ficou alguns instantes em pé, ao lado da mesa, aguardando pelo cavalheirismo de Vert. – Oh, desculpe! Que belo cavalheiro sou eu – falou ele, envergonhado, levantando-se e acomodando Lídia na cadeira a sua frente. – Fiquei meio receosa em vir, por isso, o atraso. Perdoe-me pelo tempo que o fiz esperar. – Não se preocupe, foi uma agradável espera. Você está linda – disse, mas logo preferiu mudar o rumo da conversa devido ao desconforto de Lídia – Você escolheu um bom lugar, esse restaurante é muito bonito. – Eu venho muito aqui, é um dos poucos lugares onde eu me sinto realmente bem. Vê aquele enorme quadro à direita do bar? É minha melhor obra. Vert conteu um gemido de espanto ao olhar o quadro. Era uma bela pintura que retratava vários homens, mulheres e crianças sofrendo e, acima deles, em altas nuvens, dois anjos decidiam seus futuros. Vert olhou para Lídia desconfiado mas ela apenas admirava sua obra com um intenso olhar de ternura. – Eu precisava vir admirá-la uma última vez – disse ela com um estranho sorriso, mas não parecia estar se dirigindo a Vert. Ele estranhou aquelas palavras e o modo como Lídia as dissera mas estava tão surpreso e atônito que nem conseguiu perguntar sobre o que ela estava falando. – Bem, podemos pedir agora? Como você bem disse, eu estou faminta – falou, parecendo mais animada.  Apesar do susto que, inconscientemente, a menina pregara a Vert, o jantar transcorreu normal, sem maiores problemas. Eles conversaram bastante, se bem que Vert procurava despistar a menina sobre sua vida e saber mais sobre a dela. Na saída, ele se ofereceu para acompanhá-la até em casa. Felizmente, ela morava do outro lado da Praça das Estrelas.  – Que linda noite! As estrelas estão brilhando tanto. Importa-se de sentarmos um pouco?  – Claro que não. Realmente está uma noite magnífica – concordou Vert, sentando no chão ao lado dela.  – Eu gosto muito dessa praça. As famílias passeando, as estrelas iluminando tudo, me deixam tão tranqüila. Aqui consigo um momentâneo vislumbre da paz que tanto procuro.  – Não pude deixar de notar seu aspecto triste, Lídia. Posso ajudá-la? – falou ele, olhando-a atentamente.  – Eu não tenho mais ajuda! – disse, sorrindo de forma um pouco histérica, que espantou Vert.  – Sempre há uma saída. As pessoas sempre teimam em ver as coisas piores do que elas realmente são. Vê aquelas belas estrelas, Lídia? Neste exato momento, lá em cima, há um Deus de coração infinito, que certamente nos olha com bondade e amor. Tenha fé nele e em você também, e verá como tudo parecerá mais simples.  – Você é que parece estar pintando um belo e irreal quadro agora. Eu não acredito em mais nada. Minha fé e esperança se esvaíram como um punhado de areia. Para mim, a vida acabou.  – Não diga isso, Lídia! Você não imagina como suas palavras entristecem aquele que nos guarda.  – Como pode saber disso? Como sabe se ele realmente existe? Para mim, ele nunca existiu e, sinceramente, não me faz falta.  – Ele sempre esteve lá em cima, Lídia. Não o esqueça dessa maneira, apenas sinta o seu amor.  Vert segurou suas mãos e Lídia sentiu uma profunda paz que parecia não ter fim. Pela primeira vez, ela encarou os olhos deles, que brilhavam como duas estrelas. Ela fechou os olhos por alguns instantes sentindo aquela aura mágica mas quando os abriu novamente, havia uma intensa luz que emanava de todo o corpo de Vert. Assustando-se com essa cena tão extraordinária, ela soltou suas mãos e pôs-se de pé bruscamente.  – Você… você parece…  – O que eu pareço, Lídia? – disse Vert, também pondo-se de pé.  – Nada! Eu devo ter bebido demais. Desculpe, tenho que ir – disse, dando as costas e caminhando vagarosamente em direção ao antigo prédio em que morava.   – Lídia!  Ela voltou-se assustada.  – Sempre há uma esperança se existir fé – disse ele, olhando-a com ternura.  – Perdoe-me… – com um amargo sorriso e uma lágrima rolada, ela correu para casa.

 Havia pouco mais de meia hora que Vert se despedira de Lídia. Ele deixou-se ficar na praça, pensando em todas as coisas que tinham acontecido durante essa nova vinda à Terra. Pensava, principalmente, na confusa menina que conhecera. Ele sentiu o quanto ela estava atormentada e, por um breve momento, ele permitiu que ela o enxergasse realmente. Ele não sabia porque mas sentira algo muito especial por Lídia. Também não sabia se tinha agido correto mas, em todo caso, ela dera crédito à bebida que tomara a mais. Já estava duvidando se ela seria a pessoa que ele precisava. Como poderia salvar a humanidade, uma garota que nem sequer acreditava no Deus que a criara?  Finalmente, ele decidiu retornar ao hotel em que se hospedara. Quando ergueu-se para ir embora, percebeu ao seu lado a bolsa que Lídia esquecera em meio a sua perturbação.  – Será que farei mal em ir devolvê-la agora? – pensou ele – Provavelmente, logo ela precisará da bolsa e isso serve como pretexto para vê-la novamente.  Ele caminhou em direção ao prédio em que Lídia morava. Agora, tão próximo, ele achou que o prédio parecia ser muito pior. Na verdade, estava quase caindo aos pedaços. Como podia uma artista de tanto talento morar em um lugar como este?  O prédio não tinha porteiro mas Vert não teve maiores problemas em saber o apartamento em que ela morava. Na parede do lado esquerdo, havia um papel com uma lista dos que deviam o condomínio e o nome Lídia Cerqueira estava com uma dívida de sete meses. Como também não havia elevador, ele teve que subir os três lances de uma precária escada.  O apartamento 304 era o último do corredor. Vert tocou a campanhia mas ninguém atendeu a porta. Tornou a tocar e novamente não houve resposta. Tocou outra vez e nada. Bateu na porta e nem sinal de vida.  – Lídia, sou eu, Vert. Você está bem?  Ele começou a ficar preocupado com a ausência de resposta e resolveu arrombar a porta. Graças a uma boa condição física, conseguiu seu intento com alguns golpes apenas. Estava tudo escuro mas, felizmente, ele logo encontrou o interruptor que acendia as lâmpadas da sala. O apartamento era pequeno e pobre mas bastante gracioso. Vert chamou por Lídia novamente e não houve resposta. Ela não estava na sala, nem na cozinha ou no banheiro. O único cômodo que sobrara tinha sido o quarto. A porta estava destrancada e, ao contrário do resto do apartamento, estava iluminado, não por luz elétrica mas por algumas velas no chão. Havia um balde cheio de gelo, praticamente todo derretido,  e uma toalha molhada em cima de uma mesinha encostada no canto da parede ao lado da porta. Lençóis muito brancos forravam a cama e pelo aspecto pareciam novos e sem uso.  Vert estranhou todo aquele cenário montado e a ausência de Lídia no apartamento. Até que ele viu uma folha de papel presa a um pequeno porta-retrato em cima de um criado-mudo do outro lado da cama. Ao dar à volta para ver do que se tratava aquele papel, ele viu uma cena terrível que seus olhos nunca haviam presenciado. Lídia estava caída no chão em meio a uma grande poça de sangue e próximo a uma de suas mãos estava uma lâmina de barbear.  Ele segurou-a nos braços e colocou-a em cima da cama. Ele não sabia há quanto tempo ela estava inconsciente, mas graças a sua inexperiência, ela não conseguiu fazer cortes profundos que lhe tirariam a vida rapidamente. Apesar disso, ela estava bastante pálida e já havia perdido muito sangue. Por alguns instantes, ele não soube o que fazer, mas olhando aquele rosto quase sem vida mas ainda belo, aquela boca sem cor que ele nunca havia tocado e a respiração fraca que logo iria cessar, algo passou por sua mente.  – Todo o amor que eu sinto pela humanidade é nada perto do que agora sinto por você. Agora eu entendo perfeitamente o que inspira a bondade dos homens e sei que sou capaz de fazer qualquer coisa para salvar a sua vida. Eu acho que… que amo você, Lídia.  Ele pegou as mãos dela e com um toque parou o sangue que ainda escorria de seus pulsos. Suas lágrimas misturaram-se ao sangue que maculara aqueles brancos lençóis. Ele colocou a mão sobre o seio esquerdo de Lídia sentindo a inútil luta que seu coração ainda insistia em travar.  – O que pensando em fazer, Vert?  Vert voltou-se assustado e parado, junto à porta, estava Lavian olhando-o com olhos apreensivos.  – O que faz aqui, Lavian?  – Sempre estive ao seu lado, Vert. Suas recentes preocupações é que não lhe permitiram perceber isso. O que vai fazer?  – Eu a amo, Lavian. Pode até parecer absurdo em tão pouco tempo que a conheço, mas é isso que sinto agora e, talvez, o que sempre senti. Não sei explicar mas é como se eu sempre a tivesse amado.  – Amor… amor é um bom sentimento, Vert. Mas esse amor que você diz sentir só vai lhe trazer sofrimento.  – Um amor verdadeiro não mede as conseqüências, Lavian. E por piores que elas sejam, ao olhar para Lídia e ver sua vida se esvaindo, enxergar a morte lhe abraçando e a maldição que cairá sobre ela por ser uma suicida, minha existência chega a ser insignificante.   – Que sentimento absurdo é esse, Vert? E a maldição que cairá sobre você? E a oportunidade que me pediu? Já esqueceu seus pobres mortais e sua missão?  – Não… não os esqueci. Mas virei presa de uma armadilha cruel e já não tenho outra saída. Sei que fracassei com minha missão e, provavelmente, logo Lídia não existirá mais se você seguir os seus planos, mas eu não suportaria vê-la em eterno sofrimento.  – Não faça isso, Vert. Você é um anjo, ora! Você está acima de qualquer pobre sentimento humano. Não se perca dessa maneira. Deixe-a morrer, Vert!  – Eu não a deixarei morrer suicida, Lavian! Sou um anjo mas talvez meu amor pelos mortais tenha me feito mais mortal do que eles próprios. Deixe-me em paz, Lavian.  – Você não tem idéia do que está fazendo, porém, eu não insistirei mais. Também nós, anjos, somos dotados de livre arbítrio, contudo, peço-lhe, reflita um pouco mais.  – Não há mais o que refletir, Lavian. Agora, vá! Deixe-me terminar o que comecei.  – Sentirei sua falta, meu amigo.  Vert não conseguiu olhar para Lavian porque sua dor era muito grande e suas lágrimas já o sufocavam completamente. Ele permaneceu assim até que não sentiu mais a presença do amigo. Ele enxugou suas lágrimas no lençol branco e novamente pousou sua mão sobre o coração de Lídia. Ele fechou os olhos e começou uma espécie de oração numa língua absolutamente desconhecida. De repente, a luz que Lídia havia visto na praça tomou conta do corpo dele e foi, aos poucos, passando para o corpo dela. Eles ficaram, então, ligados por essa intensa luz que os rodeava. Vert sentiu o coração dela voltando a bater normalmente e sua respiração ficando forte outra vez. A cor e a vida voltaram ao rosto de Lídia que abriu os olhos vagarosamente.  – Vert, por que está chorando? – sussurrou ela, ainda um pouco fraca.  – Porque eu te amo, Lídia!  Ele curvou-se e a beijou levemente nos lábios. Lídia não conseguia entender direito o que estava acontecendo até ver os cortes nos pulsos e se lembrar do que fizera. Ela pensou estar morta e começou a chorar também.  – Você é um anjo, Vert?  – Sim, eu sou um anjo, Lídia, mas você não está morta. Por favor, não chore, você vai ficar bem.  – Você é um anjo e eu não estou morta… Você salvou minha vida?  – Lídia, eu lhe dei outra oportunidade de viver. Uma nova chance de prosseguir sua vida e fazer as coisas certas. Olhe para mim, eu sou um anjo. Nunca me esqueça e nunca duvide do amor e da existência do Deus que lhe criou.  – Vert, você está sumindo! O que está acontecendo?  – Não se preocupe, tudo vai ficar bem agora. Eu tenho que ir mas lembre-se, sempre há uma esperança.  Mal terminara de pronunciar essas palavras, Vert desapareceu completamente. Lídia levantou da cama e olhou para todo aquele sangue sem conseguir conter as lágrimas.  – Meu Deus, o que eu fiz? – gritou ela – Vert, não me abandone!  – Vejo que, realmente, deu atenção às palavras de meu amigo, já está chamando pelo Deus que você julgava não existir.  Lídia assustou-se com a imponente voz e com o homem que ela via agora junto à porta. Ele era extremamente branco, quase tanto quanto os lençóis que ela comprara.  – Quem é você?  – Eu sou Lavian, um amigo de Vert.  – Você também é um anjo?  – Sim, eu sou um anjo, mas muito diferente do meu pobre amigo.  – Onde ele está?  – Por amor a você, ele sacrificou a própria existência. Nós, anjos, temos muitos poderes, Lídia, inclusive o de ressuscitar vidas. Mas o uso desse poder nos é negado a menos que tenhamos ordem para isso. Como suicida que era, você estaria amaldiçoada por toda a eternidade. Vert não admitiu isso e puxou para si sua maldição. Ele deu sua vida para salvar a sua. Ele a salvou da morte e, por isso, foi amaldiçoado.  Lídia não conseguia aceitar aquelas palavras embora soubesse que eram verdadeiras. Ela começou a chorar novamente e sem conseguir falar algo, continuava escutando as palavras de Lavian.  – A presença de Vert nesta terra deve-se a uma oportunidade que ele me pediu. Eu estava preparado para destruir todos os homens e começar uma nova vida neste lugar. O grande coração dele falou mais alto novamente, tentando me desviar desses planos. Ele queria uma chance para mostrar-me que ainda existia algo de bom que valeria o perdão pelos erros dos mortais. Ele pensou que você seria esse algo mas sua atitude impensada acabou por jogá-lo numa tempestade que ele não conseguiu controlar. E por amor a você, ele falhou em sua missão.  – E apesar de tudo isso, você seguirá com essas intenções terríveis?  – Eu ainda não creio na bondade dos mortais, Lídia. E Vert só conseguiu me mostrar a existência decadente de um suicida. Mas com seu sacrifício, ele me mostrou algo mais. Apesar de eu não entender o amor que ele sentia por você e por esta terra, eu imagino que deveria ser algo muito forte. Algo que valesse a dor que eu estou sentindo pelo destino cruel que se desenhou para ele. Ele era meu amigo, Lídia. E por respeito e amor a ele, eu darei aos mortais uma nova chance de viverem.  – Obrigada… – foi tudo o que Lídia conseguiu dizer a ele em meio a tantas lágrimas.  – É hora de partir. Peço-lhe que lembre-se sempre dele, Lídia. E aproveite o presente que ele lhe deu.  Lavian sumiu da mesma maneira que Vert. Lídia deixou-se cair no chão ainda sem conseguir conter as lágrimas que lhe manchavam todo o rosto. Em cima do criado-mudo ainda estava a folha de papel que Vert não chegara a ver. Todo em tinta preta, estava o esboço de uma pintura, que revelava dois belos anjos decidindo a vida dos mortais e entre eles uma moça toda coberta de sangue.