Contos Nordestinos – Memorial Pernambuco (Don Antonio)

O  VISITANTE  ILUMINISTA
 

Os homens de preto chegaram na madrugada. Arrombaram a porta com estardalhaço, entraram derrubando móveis, chutando cadeiras, quebrando quadros e vasos, sem demonstrar nenhuma preocupação, decididos. Não tive tempo de vestir-me, arrastaram-me pelos cabelos. Chutavam-me sem piedade, no rosto, nas costas, barriga, cuspiam em mim que me debati em vão. Marta, abraçada aos meninos, chorava e gritava socorro. Socorro que não veio e não viria. Jogaram-me no banco de trás de um carro preto, enfiaram-me um capuz e não vi mais nada. O cheiro do lugar era uma mistura de terra molhada e mofo. Ouvia passos não muito longe de onde lambia minhas feridas com o orgulho besta de quem se sente inocente. Inocente de quê? Até àquele momento não me passara pela cabeça o motivo de toda essa selvageria. Por quê estava ali? Não sabia, apenas lambia minhas feridas e pensava em Marta e nos meninos. Perdi a noção do tempo, não sabia o que se passava ali perto. Vez em quando imaginei que alguém chorasse, ou seria uma risada? Ou mesmo um gato no cio a berrar seu desejo pelo telhado? Não sei. Afastara-me um pouco da parede, estava fria e uma goteira insistia em despencar sobre minha roupa. Que estou fazendo aqui? Que lugar é esse? Ouvi passos, abriram uma porta . “É esse o homem?”, uma voz rouca perguntou. “Sim, é ele mesmo”. Fez-se um silêncio dolorido, meu coração disparou. Senti um forte golpe na cabeça. Apaguei. Acordei com o som de trovões. Chovia torrencialmente. Goteiras infestavam o lugar, eu tremia de frio. Havia alguém ali comigo, podia sentir sua respiração. Um rádio anunciava a enchente, o deslizamento de terra, a morte de alguns favelados. Entre uma tragédia e outra tocava música americana. O cheiro que me invadia agora as narinas, atravessando o sangue que se coagulara, era de cigarro. O lugar fedia à nicotina e alcatrão. “Podes me dar um cigarro?” arrisquei perguntar. Ouvi um arrastar de cadeiras, passos e senti um líquido quente em meu rosto. Urina. O fumante resolvera mijar sobre mim. Gargalhava sua selvageria, enquanto, ainda sentindo dores horríveis, tentava fugir do jato quente e fétido que aquele animal despejava sobre mim. “Toma teu cigarro”, disse e ouvi que escarrava sobre meu corpo. Por quê? Meu Deus, que está acontecendo? “Por quê estou aqui? ” gritei. “Que foi que eu fiz?”. Não fizera nada, sempre fugira de reuniões, passeatas, protestos. Cumpria a lei, por pior que fosse, então…por quê eu? Um reles bibliotecário que passava seus dias entre livros e silêncio, na mansidão de uma biblioteca do Estado. Que desgraça caíra sobre mim? Só podia estar havendo um engano. Mas, mesmo sendo um engano, que direito tinham de tratar qualquer miserável assim? Nenhum. Estava com sede mas temia que o fumante, caso lhe implorasse água, me oferecesse sua urina. Esse pensamento revolveu meu estômago que também estava vazio. Precisava de água e comida. Já se passavam muitas horas desde que, encapuçado, ferido, debaixo de chuva e porrada, fui jogado nesse lugar. Ouvi gritos não muito longe daqui. Que estava havendo com todo mundo? Quem eram os homens de preto? Por quê ninguém fez nada pra me socorrer? O que lhes dava tanta autoconfiança a ponto de invadirem meu apartamento e me seqüestrarem tão facilmente? À urina do fumante, juntou-se a minha. Não me atrevi a pedir que me levasse ao banheiro. Fiz ali mesmo. Estava um nojo. A umidade do lugar fazia com que minha calça e camisa não secassem. Começava a tremer de frio. Queria um café, um banho quente, uma cama. Sentia meu rosto inchado, não conseguia abrir, sob o capuz, meu olho direito. Estaria irremediavelmente cego? Pensava enquanto a fome e a sede trituravam meu espírito. Adormeci, extenuado. Acordei com um grito terrível. Alguém, provavelmente uma mulher, chorava do lado de fora de onde me encontrava. Ouvi quando implorou piedade e clamou pelo marido e pelos filhos. A mulher soluçava, estava histérica, berrava: “Por quê eu? Quem são vocês? Socorro, socorro!” Pobre mulher, que fizera de tão grave pra que merecesse o que deveria estar recebendo? E eu? Que estava eu fazendo ali? E quem seriam aqueles homens de preto? Comecei a gritar também, talvez ajudasse se gritássemos juntos. Certamente haviam outras pessoas ali naquele inferno fétido. “Soltem-nos…socorro…socorro…filhos de uma puta”. Ouvi quando a porta se abriu, alguém entrou e desferiu-me um golpe na cabeça. A dor foi indescritível, quase perco os sentidos. Ouvi o som de um disparo e então não mais ouvi a voz da mulher. Trouxeram-me água. Água de sabor amargo, mas água, não era urina. Talvez água salobra, podre, não filtrada mas, meu Deus, era água. Bebi com a sede dos séculos. Queria comida e atrevi-me a pedir. Trouxeram umas bananas que consumi rapidamente. Foi apenas nesse momento que me libertaram do capuz. A sala nua, nenhum móvel além de uma mesa de madeira e um banco de plástico. Sobre ela um pequeno rádio de pilha. As paredes pintadas de um branco ofuscante, nenhuma janela, apenas uma porta de madeira. Senti profundamente a falta de um espelho, não tinha consciência dos estragos que haviam me causado os homens de preto. Tentei levantar-me mas a dor era insuportável. Desconfiava que tinha a perna quebrada, doía demais e estava muito inchada. Na parede havia a fotografia do presidente da república. Apenas ele, neste momento, era a testemunha de minha imolação. Ofereci-lhe as cascas das bananas e desatei uma risada histérica. Estava ficando louco. Há quanto tempo estaria ali ? Dias? Horas? Semanas? Não tinha a menor idéia. Um homem entrou abruptamente. Não me lembro de ter ouvido seus passos. Usava terno preto e bigode. Sapatos muito brilhantes e gravata vermelha. Trazia um jornal embaixo do braço. Ficou me olhando impassível, nenhum sentimento transparecia de seu rosto. Foi em direção à fotografia na parede, arrancou-a, amassou-a e jogou-a ao chão. Acendeu um cigarro e perguntou se eu queria fumar. Disse que sim. Ele começou a rir e inquiriu-me se não preferia um jato farto de urina. Era ele o filho da puta, então. Peguei-me irado, mas não tinha forças nem pra cuspir. Ele se aproximou devagar e perguntou-me por quê estava ali. Não sei, disse-lhe, queria que me dissessem por quê estou aqui. Como estaria Marta? E meus filhos? Ele pareceu adivinhar que eu pensava em minha família. “Foi triste o enterro de sua mulher e seus filhos”, disse numa frieza glacial, “todos sentiram sua falta no enterro, cochichavam sobre sua responsabilidade na morte deles”, começou a rir. Mortos? Não, gritei, facínoras, miseráveis, por quê? Por quê? Ele tragava o cigarro e sorria. “Você não sabe a dificuldade que foi armar tudo isso, mas está valendo a pena. Saiba que  a polícia está procurando por você”  disse isso e jogou o jornal sobre minhas pernas. Antes de fechar a porta ainda virou-se em minha direção e disse: “Leia e divirta-se”. O jornal confirmava as minhas mais trágicas expectativas. Trazia uma foto minha e a manchete MATOU A FAMÍLIA E SUMIU. Meu Deus, como puderam? Minha garganta parecia querer fechar-se. Senti ódio e tristeza profundos, abissais. Ainda consegui ler um parágrafo da matéria que dizia que “nesta manhã, foram encontrados os corpos da dona-de-casa Marta Silva Lemos (37) e seus filhos menores Anderson (6) e Vagner (9). As vítimas apresentavam ferimentos de bala e o apartamento encontrava-se em deplorável estado de destruição. O suspeito desse crime bárbaro encontra-se desaparecido. Trata-se do bibliotecário Vagner Lemos (38) que, segundo a polícia, deverá ser preso nas próximas horas.” Não tive tempo nem condições de continuar a leitura daquela tragédia toda. Dois homens de preto entraram armados e foram logo vendando meus olhos com violência. Amarraram minhas mãos com o que parecia ser uma corda comum. Ataram-me a uma cadeira de madeira, prendendo meus pés e meu corpo a ela, imobilizando-me totalmente. Rasgaram minha camisa e me despiram completamente. Ouvi quando um deles disse: “Agora é só esperar, o presunto está no ponto”. Não sentia medo, apenas uma tristeza enorme pela perda de Marta e dos meninos. Minha vida já não valia mesmo mais nada. Mas ainda me perturbava a razão de tudo isso. Por quê? Por quê? Comecei a tremer de frio e febre. Alguma coisa partira-se dentro de mim, um gosto de sangue me torturava. Tentei repassar meus últimos momentos antes que, naquela madrugada, me arrastassem como um verme e eliminassem meu bem mais precioso. Amputaram minha vida violentamente e nem sabia por quê? Haveria um por quê nessa bestialidade toda? Algo explicava tudo isso? Não conseguia mais pensar, sentia muito frio e percebia que não duraria mais muito tempo. Ouvi ao longe um som de piano, alguém tocava Bach, reconheci a melodia, era Bach. Aqui? Um dos homens de preto comentou que “o homem chegou”. Que homem? Arrisquei perguntar e recebi um chute como resposta. Ouvi a porta se abrir e uma voz aveludada dizer: Boa noite senhores, como está nosso menino? Os homens de preto responderam quase que simultaneamente: “Está arisco”, e riram-se, os canalhas. O novo visitante pediu que saíssem e nos deixassem a sós. “Ele é meu agora, fizeram um bom trabalho. Passar bem”. Ouvi passos, o som da porta fechando-se, e os acordes de Bach preenchendo toda a sala.  “Bach.. gosta?” Perguntou-me o visitante. Fiquei em silêncio, tremendo de frio. Comecei a tossir e a escarrar um líquido grosso, viscoso. Deduzi que era sangue. O sabor era inconfundível. Era mesmo sangue o que estava a expelir agora. Alguém sentira minha falta nesses dias? Meus amigos acreditaram na versão estúpida da polícia? Será que criam mesmo que eu seria capaz de cometer o absurdo que me atribuíam? Nunca, nunca, nunca. “Não me respondeu ainda” disse o visitante “gosta de Bach? Eu adoro, simplesmente venero. Como se flutuasse, expandindo a alma numa explosão de acordes, multiplicando-se além, muito além, do mundo das idéias, pura divindade. Não sei agir sem antes injetar em minhas veias um pouco dessa poção mágica. Ouça, relaxe, deixa a melodia adentrar sua alma dolorida, sinta-a como energia pura, ohhhhh, é uma maravilha.” E meu silêncio a fazer o contraponto desse discurso fantástico. Ousei desafiá-lo e emendei sem que esperasse: “Prefiro Telleman”, e é claro que eu estava mentindo, mas justificava contrariar o meu algoz. Ele riu e perguntou-me se não me sentia um personagem de Kafka. Tornou a rir, dessa vez mais forte, mas inegavelmente era um sorriso controlado, estudado. O visitante não era decididamente um joão-ninguém, tinha certa formação cultural. Nunca pensei que meu deleite, ouvir o barroco do gênio, seria um dia meu suplício. “Meu amigo, vamos começar nossa história”, disse-me ele e senti quando um instrumento qualquer, que parecia ser um alicate, esmagou o dedo indicador de minha mão direita. Gritei desesperado, a dor era insuportável. Ele em silêncio, parecia apreciar meu desespero. “Não lhe parece que o homem barroco era um homem mais rico culturalmente? “, disse-me , imune aos meus gemidos. “Veja, a perda de referência, Galileu apontando uma outra maneira de ver o mundo, os novos mundos, o caminho bipartido… Deus e o Diabo, o sagrado e o profano,  a alma e a carne… já pensou nisso?” E novamente senti o mesmo instrumento triturar meu mamilo esquerdo. Desmaiei. Acordei tremendo. Não conseguia controlar meu corpo. Tremia e as cordas, muito apertadas, torturavam ainda mais meu frágil corpo. Havia um silêncio atordoante, mas percebia que havia alguém comigo. A respiração do meu companheiro de sala era evidente. De repente o som de passos e novamente a música a invadir o recinto. Era um concerto para flauta, um concerto barroco, eu tinha certeza, mas não me lembrava do autor e nem me era importante sabê-lo. “Parece que meu amigo acordou, vamos continuar nossa história?” , a voz aveludada e insensível do visitante. “Porque fazes isso comigo? Por quê?” Gemi da cadeira. “Ora, ora, meu caro. Certas coisas não têm por quê, simplesmente são. Não me faça uma pergunta tola dessas, estás subestimando a nossa inteligência.” E senti que bateu de leve em meu rosto. Calçava luvas, senti quando tocou minha face. “Onde estou? Quem é você? Por quê?” Gritei e me debati na cadeira. Ouvi sua risada contida e dessa vez senti uma fisgada na coxa, que foi seguida por uma ardor forte que desembocou em dor. O filho da puta cortara minha carne com algum estilete ou outro tipo de lâmina. Já não tinha forças para gritar, apenas gemi e me contorci na cadeira. “Ë incrível notar como é bela a seiva que nos corre pelo corpo. Você alguma vez parou para examinar o próprio sangue? E o seu sangue é um sangue especial, nutrido por horas e horas e horas de um ambiente de livros. Tenho uma teoria, os homens que se nutrem de conhecimento têm, certamente, um sangue mais belo que àqueles que se nutrem de subserviência, não concorda?” E despejou um líqüido sobre a ferida. Minha perna parecia pegar fogo. “Porque você faz isso comigo?” grunhi. “Mais uma vez você se confunde e me irrita. Não leve as coisas assim tão pelo lado pessoal. Você acha que é só você que me acompanha nessas deliciosas sessões?”. “Mas porque fazes isso? Prazer? Como pode, um indivíduo culto, ou pelo menos julgo ser culto, desempenhar tamanho ato de barbárie?”  Ouvi um barulho plástico, a música parou. Deduzi que fosse uma fita cassete. Ele trocou a trilha sonora de meu inferno e disse-me: “Trouxe Telleman pra você, muito embora eu duvide do seu gosto. Mas gosto é mesmo relativo não é? Bom, respondendo sua pergunta: faço por prazer o que você chama de ato de barbárie. Não vejo assim, vejo como ato sublime, ato superior, o bárbaro aqui é você e sou simplesmente aquele que se compraz em vê-lo deteriorar-se. Eu ficarei, você certamente não. Quanto a ser culto, é justamente por isso que estou do lado de cá dessa nossa relação. Ou você acha que o conhecimento nos torna humanistas? Ah meu caro, não consigo aceitar que você interprete a história do homem como uma evolução dos sentimentos. Isso é cinismo, ou melhor, é idiotia pura. Veja a história, é fácil. Quanto mais conhecimento, mais requintes na depravação do homem. Quanto mais saber, menos ética e moral. Que palavras são essas? Ética, moral, humanismo, enfim , qualquer palavrinha que guarde similaridade semântica com essas, tende a desaparecer da prática do homem douto, do sábio. Leia o jornal, veja o que se passa ao redor. Você certamente deve ter lido “O Discurso do Método”, e portanto não é tão inocente a ponto de querer parecer surpreso com o que fazemos aqui. Você consegue me irritar falando essas baboseiras, meu caro. Quem acredita na idiotice iluminista senão quando ela é o pano de fundo para a sustentação do poder? Ora, meu caro, há um rebanho enorme de indivíduos idiotas a espera do chute, da porrada. Fernando Pessoa fala dessas pessoas com uma ironia exemplar. Adoro poesia, é ótimo ler os concretos enquanto aplicamos eletrochoques. É uma sensação indescritível. Para cada trabalho que faço aqui utilizo uma estética apropriada. No seu caso, a música barroca faz todo o sentido do mundo. Percebe que a dor que planto em seu corpo é como a arte da fuga? ” E riu de mim que começava a sentir-me dormente. “Em alguns casos é indicado usar Wagner. Os rompantes sinfônicos combinam com muito sangue. Não gosto muito quando tenho que utilizar Tannhauser para trabalhar, mas já o fiz muitas vezes. Hoje, com o treino quase diário, consegui uma performance no mínimo elogiável. Sei o exato momento de estourar uma jugular em harmonia com o ribombar dos tambores. Engraçado, mas nunca tentei Carmina Burana, acho o Off meio vulgar, não daria um trabalho requintado.” Senti a dor de uma queimadura em minhas costas. O cheiro de cigarro e carne queimada, minha carne, meu desespero. “Meu Deus, gritei, mate-me logo. Acabe com isso, pelo amor de Deus”. Ele riu. “Calma, calma, falta pouco, muito pouco.

“Olha, continuou o visitante, nem sempre é a música a minha inspiração para esse trabalho que adoro. Respondendo finalmente: faço por prazer, pelo amor à arte. Às vezes leio, e nesses casos eu prefiro a poesia. Claro que nessas ocasiões seleciono poemas que acompanhem a dor do felizardo. Digo felizardo porquê acredito que vocês são realmente beneficiados por uma bela morte. Quantos milhões de idiotas provam por aí uma morte besta, vazia, sem estilo ou arte? Você está morrendo com sua música preferida e arrisco dizer que estou conseguindo me superar artisticamente, pena que você não possa se ver agora, me lembra um Goya pop”  E eu estava mesmo morrendo, já não sentia dor alguma, apenas frio, frio, frio… 

 (recebido via email em 25/11/98)