Contos Nordestinos – Memorial Pernambuco (Don Antonio)

BILIU 
 

Na Fazenda Moita Bonita tudo era realmente muito estranho. A começar pelo nome, pois aquele pedaço de chão ressecado quase desertificado, tinha apenas uns minguados alqueires e nunca seriam o suficiente para serem enquadrados como fazenda. Era mal e parcamente um sitiozinho mambembe. E o complemento Moita Bonita, deveria ter sido uma gozação, não existia moita nenhuma por lá, nem mesmo de aveloz, planta que serve para cercar uma propriedade e por qualquer coisa, expele um leite que queima como fogo. Nem cobra gosta de passar por baixo das moitas de aveloz. O gado também declina das suas sombras, pois o preço a pagar é altamente doloroso. Ficamos sem saber o porquê de tão estranho nome, mas os donos da terra eram normais, se é que se pode considerar normal um casal que em dias tão difíceis resolve colocar no mundo oito filhos ainda recebendo em casa os filhos da irmã de um deles que sumiu no mundo depois que o marido morreu. Contando com os pais, eram dezessete pessoas morando em dois quartos, cozinha e varanda. Tudo caindo aos pedaços, triste de tão velho.  Banheiro não tinha, e nem precisava já que uns dois ou três porcos criados soltos, resolviam qualquer problema que pudesse surgir com fezes largadas a céu aberto. O certo é que ninguém nunca conseguiu pisar em alguma, pois os porcos chegavam a ficar de plantão, esperando o fulano deixar o monte. A tal Fazenda Moita Bonita, ficava nos cafundós do sertão da Bahia, bem perto da divisa com sabe Deus o que. Era tão distante que nem o correio saberia onde diabos moraria o destinatário, se a alguém de lá fosse enviada uma carta. Como se costumava dizer por aquelas bandas, ali se ficava a um bocado de quilômetros de lugar nenhum. Num lugar tão ermo como aquele, Biliu só poderia ter chegado lá da forma que chegou, caindo de um caminhão de mudança. Uns retirantes passaram por lá e o danadinho, bem novo ainda, cismou de ficar em pé no alto de uns caixotes para latir e rosnar para os moleques de Moita Bonita, e despencou de lá. O caminhão não parou e Biliu refeito do susto até tentou ir atrás, mas estava com a anca dolorida do tombo e logo caiu ganindo de fazer dó. Para a molecada de Moita Bonita aquele foi um dia de sorte. Eles só tinham para brincar uma ou outra lagartixa, que caía muito de vez em quando do alto da parede. Mas elas duravam pouco, pois Naninha, a gata da casa, logo as comia.  Brincar com Naninha era impossível, ela gostava era de sossego, e esturrava logo com quem bolisse com ela. Por absoluta falta de um macho, Naninha estava destinada a morrer invicta. Também já estava velha a coitada, muito magra, devido à escassez de comida. Naquele lugar esquecido, nem pássaros encontravam o caminho na maior parte do ano. Ratos, se um dia existiram por lá, se haviam mudado de muito! Pobre Naninha, tinha que esperar pelos restos num lugar de comida pouca! Foi por isso que para surpresa geral, ela se tornou perita em comer farinha seca, nem precisava molhar. Dizem que a fome ensina gato a chupar cana, acho que ela só não aprendeu devido a inexistência de cana naquelas paragens.  Mas, tinha bem nos fundos da casa uma única árvore. Uma bela, grandiosa, e muito fértil mangueira. Ela era a salvação deles, pois ficava atrapalhando o caminho do sol da tarde, e com isso a casa ficava na sombra nas horas de queima mundo. Todos os dias do ano aquela amiga frondosa servia de anteparo e lenitivo naquele lugar perdido. Quando chegava a época da safra todos engordavam um pouquinho. E o bom é que a mangueira era meio sem juízo ou ajuizada demais, o que mais sabia fazer era dar carga temporã e assim iam arranhando o que comer. Eram as únicas épocas em que prendiam os porcos, para não ter que disputar as frutas entre tapas e mordidas. Abençoada mangueira, sua amizade não tinha preço! Servia-os sem nada cobrar, se contentava em receber a pouca água do uso que eles tinham para jogar. Aprendeu a conviver com um pouco de sabão na sua água de beber, que também não era muito, eles tinham que economizar. Ela era a ama seca, já que em seus galhos frondosos os meninos brincavam de subir e de pular. As meninas tinham que ficar só em baixo, sentadas na sombra, pois segundo a crendice popular, mulher não pode subir em fruteira, estraga a safra e árvore quando vê   os fundilhos de menina não quer mais botar. Quando Biliu chegou a Moita Bonita, era tempo de manga, os meninos viviam melados, com parte do cabelo em pé, endurecido pelo mel da fruta, a barriga cheia de manga por dentro e por fora. Era tempo de se fartar. Seguindo as ordens da casa, ninguém podia subir para pegar manga no pé, só podia pegar o que a mãe árvore quisesse dar para aquele dia. Pouco ou muito tinham que se contentar. Mas a mangueira dava com fartura, parecendo saber da real situação daquela gente.  À noite todos deitados ficavam escutando o barulho, póque tum, póque póque,tum, tum era a comida do dia seguinte caindo da galhada, direto no chão ou sobre o zinco da caixa d água. Os meninos ficavam apostando quem conseguiria acertar quando seria o próximo póque ou tum. Dormiam felizes nesse tempo de cagar mole e amarelo, a barriga cheia fazia com que se alegrassem por um nada, em tudo achavam graça, eram dias de fartura. Realmente era preciso prender os porcos, que das mangas só viam as cascas  Logo ao despertar a ordem do dia era ir catar as mangas, trazer para maínha lavar e botar na mesa enorme da cozinha, onde ficavam protegidas por uma toalha velha e muito remendada. E tinha um ritual, tinham que comer primeiro as rachadas, para não dar tempo de fermentar e só recebia uma manga se colocasse as cascas no balde dos porcos e entregasse o caroço para maínha examinar. Tinham fartura naquele tempo de manga, mas como eram muitos  precisava controlar para não haver desperdício. O caroço tinha que estar branquinho, o que era fácil dependia apenas de ficar mamando até o doce da fruta acabar. Quando os meninos apresentaram Biliu para maínha, ela ficou com pena do infeliz, pôs álcool com arnica na parte dolorida e mandou que o deixassem em paz num canto até que ele por si só resolvesse levantar. Quando o pai chegou e viu Biliu começou a perguntar o que é que ele ia comer, manga ou farinha seca? E com os dedos fazendo um barulhinho passou a chamar biliu, biliu, biliu e por Biliu ficou sendo chamado o cachorrinho. Todos riram de Biliu fazer  muita força, tentando atender o chamado de paínho e Creuzinha logo começou a tirar o sumo de uma manga madura e com uma colher ia introduzindo na boca do cachorro. Ele estranhou a princípio, mas logo acostumou e passou a beber sozinho o sumo que caía no prato. Um ou outro pedacinho que caía era prontamente engolido. E assim a velha mangueira passou a alimentar mais um. Levaram bem uns três dias para Biliu começar a correr e brincar e mais alguns para aprender a chupar manga sozinho. Pois é, neste lugar tão peculiar que é o sertão, ainda se vê cão chupando manga como a coisa mais natural deste mundo. Mas o que marcou muito bem o dia em que Biliu chegou, foi a chuvarada que deu, foi uma coisa espantosa, pois o dia de São José tinha passado, fazia uns dois dias e todo mundo já tinha descrençado de esperar chuva. O fato é que repentinamente ficou “bonito prá chover”, como diz o sertanejo, vendo o céu escuro, cheio de nuvens carregadas. E foi aquele aguaceiro. Seu Inácio tinha plantado o feijão no pó, na velha esperança que o céu mandasse uma chuva e ela já encontrasse o serviço de plantio feito. Todos se levantaram no meio da noite para festejar a chuva, com certeza que feijão brotaria e como era feijão ligeiro, com mais uma chuvinha que o céu enviasse na época da floração  estariam salvos. Teriam feijão para o ano todo e também o que vender.  Cheio de superstições, seu Inácio disse que Biliu tinha pulado do caminhão para trazer a sorte para eles, que a família de retirantes não teve fé suficiente para esperar. Parecia que eles não sabiam que quando Deus tarda é porque já está a caminho. É só saber esperar que as bênçãos, se a gente tiver merecimento, ele manda com certeza. Se o seu Inácio tinha ou não merecimento não se sabe. O que se tem por certo é que o feijão brotou, recebeu segunda chuva e foi uma das grandes safras que aquele pedaço de chão viu. O açude estava cheio, o córrego voltou a correr. O milho deu que foi uma beleza e assim puderam encher novamente o quintal de galinhas. Biliu entrou na escola de maínha para aprender a pegar o frango que ela escolhesse e segurar sem machucar. Ele foi bom aluno, era só apontar e falar pega,  o pobre realmente não tinha salvação, Biliu segurava com firmeza, sem machucar a presa, até maínha pegar e mandar soltar.  O mandiocal ficou uma beleza, a farinha e a tapioca guardada dava para mais de um ano, dava gosto arrancar as raízes enormes, que bastava ferver para cozinhar. Era o pão da manhã e do café da noite, quando não era servido um cuscuz de milho ralado, ou um beiju de tapioca. E ainda por cima tinham direito a comer ovos ou frango. De vez em quando seu Inácio trazia de longe um bode e era uma festança. Um dia trouxe também uma companheira para Biliu em recompensa por tudo que ele fazia. Seu Inácio creditava a boa sorte a Biliu, que se regalava debaixo da mesa, comendo um bocado da mão de todos, era festejado como um rei. O interessante é que aquele lugar que ele encontrou tão miserável, mudou demais durante sua vida. Hoje sim faz jus ao nome, cresceu muito com a aquisição de terras vizinhas, resultado do dinheiro ganho nas boas safras. Hoje realmente é uma fazenda e tem muitas moitas  bonitas. De capim, onde pasta um gado bom e leiteiro, de umbuzeiros que nasceram no meio da roça, de um cem número de frutas miúdas como muricis e  gabirobas que espontaneamente nascem. Além do caju, mangaba, pinha e outras mais.  A filharada de seu Inácio cresceu, alguns tomaram seu rumo, outros trabalham a terra com o paínho. Não teve ninguém que desse mau exemplo, honestos, trabalhadores, gente de bem. Já a de Biliu ficou reduzida a dois cachorrinhos que eram o pai, cuspidos e escarrados. Tão iguais que seu Inácio não quis arriscar se desfazendo de um deles. Vai que o cachorro da sorte fosse justamente o que foi dado? Assim, os últimos filhos de Biliu segundo seu Inácio, tomarão seu lugar na guarda da boa sorte da Fazenda Moita Bonita. Mas estão solteiros, é preciso arrumar uma companheira,  para não acontecer de morrerem sem cumprir com a responsabilidade ter um filho, como Biliu e não deixar a sorte mudar de rumo. E por segurança os dois se chamam Biliuzinho, já que o pai está se acabando de velho, perto da hora de morrer. Assim que o velho Biliu se for, os dois filhos ficarão no reinado, passando ambos a se chamar Biliu. Não dará confusão?  É, sei lá, diz seu Inácio, mas com a sorte não se pode brincar, seguro morreu de velho mesmo! E velho morreu Biliu, aos treze anos, sem nunca sentir a dor de uma agulhada para vacina, nunca soube que não podia comer o mundo de ossos de galinha que comeu, como também sempre ignorou que cachorro precisa tomar cálcio, ferro e vitaminas. Até nisso ele mostrou ser um cachorro de sorte!

  O interessante é que a velha e boa mangueira continua como sempre,  botando frutos quando bem entende, ela não notou que a fome deu lugar à fartura, continua resguardando uma parte da casa da inclemência do sol, não toda, pois a velha casa mudou, cresceu bastante e a velha mangueira não pode acompanhar. Maínha ainda fica deitada numa esteira, embaixo da velha companheira de guerra, sua única ajuda naqueles dias maus, quando lutava contra a miséria e a morte. Uma das raízes é travesseiro. Fica lá fazendo companhia à  mangueira, relembrando o passado e pensando no futuro, não no seu, mas no dos meninos. Olha sua galhada de um verde intenso, aqui e ali um punhado de flores, em outros lugares ainda tem fruta de vez. Toda manhã, lembrando dos dias de fome lava os frutos da amiga,  põe na mesa cobrindo com uma toalha em excelente estado, linda, toda bordada em ponto de cruz. Mainha é muito grata àquela amiga que ajudou a criar seus filhos nos tempos ruins em que nem vacas magras tinham, só fome, que só não era maior pelo amor daquela boa amiga . 

 (recebido via email em 19/04/99)