Contos Nordestinos – Memorial Pernambuco (Don Antonio)

Un Coeur Simple [Um coração simples]
(título de um conto de Gustave Flaubert)

Havia um caboclo na minha terra que dizia: ” – Doutor, tem dois tipos de serviço que eu não faço: é subir em coqueiro e descer em cacimba”. No que me cabe, cada dia, eu subo um coqueiro e desço uma cacimba, tal as euforias e os quebrantos, as maravilhas antevistas e as desgraças antecipadas por que passo.

Não há alegrias indescritíveis, nem são incontáveis as tristezas, o tempo é que náo é propício, os momentos são incertos, e as palavras me vêm tardias, depois dos heroísmos e ações imaginadas. Pois a verdade, é que mal posso agir e pensar, tudo tem que ser feito muito rápido, a vida corre e os fogosos instantes passam antes de vir a s: estão sempre à postos, no fundo da cacimba, na copa da árvores. Essa, meus caros amigos, é a lição, e eu diria mesmo, a sina, dos tristes desocupados.

“Eu não enjeito, serviço pesado”, o camarada me dizia. E explicava que não era do esforço que tinha medo, mas da impossibilidade da tarefa. Da vertigem do entrevisto, o receio da queda antes do objetivo conquistado, o medo da mudança de ares e das circunstâncias.

Nem tudo são metáforas. Mas tudo, mesmo na sua complexa inteireza, nos deixa um laivo, um risco, um traço de inacabado. Qualquer poeta ou metafísico de esquina poderá nos descrever tal fenômeno. Mas nunca poderá explicar no exato frescor na sua verdadeira atualidade, por exemplo, o gosto rascante da cajuada ou a súbita alegria trazida por um telefonema do amor tão ansiosamente esperado. São a tarefas assim, imprevistas e impossíveis, que o devotam-se os empreendimentos literários bem executados. Servicinho pesado, o da escrita!

Como encontrar um rumo plausível de narrativa? Em vão, vivo a catar nos papéis pedaços de poesia, o fragor de velhas batalhas, o brilho de antigos amores que me ajudariam a seguir aprendendo e vivendo, nesta ordem, que é a da minha preferência. Em vão, procuro ouvir e apurar meu sotaque, ajustando-o à escrita, que este é um muito útil conselho oferecido pelo poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto.

“Words, words, “; e mais, “sangue, suor e lágrimas, “chuva, suor e cerveja”.
Quedo-me a cismar que sou apenas um homem de muitas voltas. Vez por outra venho parar no mesmo lugar, por falta de orientação. E logo, algo dentro de mim, sugere: “também por gosto”.

“Não, não me agradam necessariamente os paradoxos. Desgosto deles, não os entendo. A vida já é muito complicada e deveria ser tornada clara, fácil como um gibi antigo, em que já conhecemos as tramóias, pulamos por cima delas e vamos direto as alegrias através de diálogos singelos. Isto, obviamente, na teoria; e a teoria, na prática, é outra, insistia em dizer o camarada Mao Tse Tung.

Assim, marcamos tempo, acumulamos dores, ficamos paralisados pelos sem-número juízos e apreciações, até que surja alguma coisa a que eu não posso dizer de dar o nome de milagre. Sem ele, o que se passa renitentemente comigo? Mal esboço um princípio de entusiasmo, um doce enlevo, e começa, dentro de mim o obrar de uma sombra, da acidez do desencanto, enfim, o oco da cacimba já mencionada. E o eco de tédios passados, dos frequentes desencontros que soprando-me aos ouvidos “Vale a pena?

in Diário de Pernambuco, 08/10/98