Contos Nordestinos – Memorial Pernambuco (Don Antonio)

Luís Arraes: 
O SILENCIO DO INOCENTE*

                   
                 “A idéia de vítima significa inocência. E inocência, pela lógica inexorável que rege todos os termos relacionais, sugere culpa”. Susan Sontag  

Foi um enterro simples. Ali estavam seus amigos. Não tinha família, nunca 
teve. Teve sempre, sim, amigos. A sua volta, na sua despedida, abraçavam-se, choravam. Não falavam entre si. Só gestos e o silêncio do fim da tarde, no cemitério. Além da simplicidade, havia uma dignidade naquele enterro. Enterrava-se um homem bom. Um homem de bem, como às vezes se prefere dizer. 

Quando o padre terminou sua preleção, um de nós pediu licença para falar.  Causou-nos surpresa porque era um dos mais tímidos e um dos menos  loquazes. Fez num ritmo lento, mas sem hesitação, um perfil do amigo morto. 

Tocou-me muito a parte final de sua homenagem em que se referiu ao que se enterrava história, que transcrevo de cabeça. 

“Talvez tenha sido o primeiro daqui a tê-lo conhecido. São tantos os anos de nossa amizade que perco as contas. 

Não tenho como contar tudo o que gostaria de falar dele. Tudo que tenho a dizer. Gostaria de falar de um fato, desconhecido de vocês todos. Um fato inusitado, mas um essencial em minha vida. Um fato que marcou minha existência para sempre, que talvez cindiu-a em dois. Éramos estudantes ainda. Depois de estudarmos, preparando os exames finais, fomos à varanda do meu alojamento no campus. Nossos estúdios eram vizinhos. Tomávamos cerveja, sua conversa já era naquela época a que vocês conheceram. Diversificada. Fina. Rica em imagens e humor. Num gesto involuntário, ao me levantar da cadeira, esbarrei com o cotovelo num jarro de flores. Ouviu-se um grito agudo, seguido de vozes misturadas numa algazarra da qual não conseguia-se reconhecer nenhum sentido. Eu fiquei sem ação e ele então passou ao comando. Apagou a luz da varanda e da sala, me colocou no sofá e sentou-se na cadeira ao lado.

Permanecemos em silêncio por um bom momento. Só vim a apresentar sinal de vida quando caí num choro convulso. Naquela altura ainda não sabíamos que o jarro havia matado uma criança, mas sabíamos pelo ruído que vinha do térreo que alguma coisa grave tinha acontecido. Com poucas palavras ele soube me trazer a calma de volta. Apresentava-se como prova viva e verdadeira de minha inocência. Um acidente. Um acidente. Repetia enquanto me amparava pelos ombros. E assim a história foi concluída. Um triste acidente, uma triste coincidência a desse menino estar passando diante de um prédio alto, numa noite de ventania, no momento exato em que um jarro despencava. 

Nunca mais voltamos a falar no que aconteceu nem um com o outro, e tenho certeza também pela parte dele, com ninguém mais. 

Essa história se passou há muito tempo e talvez vocês se perguntem o por 
quê eu a estar revelando agora e nessa circunstância. 

O que eu queria aqui, na verdade, era revelar essa culpa que eu carrego, no momento em que se enterra a prova de minha inocência. Ao dizer isso  percebo que poderia dizer exatamente o contrário. Revelo minha inocência no momento em que é enterrada a minha culpa. Como se elas, culpa e inocência não fossem o contrário uma da outra mas faces diferentes de uma única 

coisa. 

Não sei porque mistério o silêncio definitivo do nosso amigo – silêncio  guardado a vida inteira – me fez falar. Talvez se deva a que antes eu não  estava só e o sentido de minhas palavras seja o de querer não estar só, a 

partir de agora. 

Era o que eu tinha a dizer. 

Aproximamo-nos dele e foi num abraço conjunto, juntando todos nós que 
assistimos a descida à terra do caixão do nosso amigo.