PUNHAL NAS SOMBRAS
Sonhou que o apunhalavam pelas costas. A lâmina penetrando-lhe a carne fez com que arrancasse um grito horroroso dentro da noite. A mulher acordou assustada, perguntando o que foi que houve, você assim me mata de susto. Ele contou o sonho. Ela comentou “bobagem, bem que lhe digo que você precisa cuidar da coluna, dessas pontadas”. E sugeriu que voltassem a dormir.
Mas ele não conseguia. Era muito nítida a sensação da punhalada. Nítido também o som que vinha de trás, a voz da mulher dizendo “agora, Magno, aproveita enquanto ele está lendo”. E o golpe, surdo e fundo.
Magno. Então um homem o havia matado. A violência do golpe contava a história: ou era um homem muito forte, ou eram muito fortes seus motivos. Magno movido pela fúria da convicção e pelo impulso da cumplicidade. Afastar o empecilho, “enquanto ele estava lendo”.
O suor lhe tomava o corpo todo. Veio-lhe a idéia de passar a mão nas costas – talvez houvesse sangue ou cicatriz, o assassinato podia ter ocorrido há muito tempo. Tanto tempo que ele nem mais se lembrava, pelo menos não no mundo consciente. Nem lhe parecia conhecer nenhum Magno. Nem era preciso conhecer…
A voz da mulher. De quem era aquela voz? Ele não a teria ouvido ainda há pouquinho sugerir que ele cuidasse da coluna? Como era a voz do sonho? Associou a dor na coluna com sua posição na cadeira. Relacionou as estocadas da arma varando-lhe a carne com as pontadas no peito. Aproximou um tempo remoto com o momento recente em que ele se entretinha com a leitura.
Qual o livro? Tinha lido tanto a vida inteira, embora, ultimamente, viesse diminuindo o ritmo. Estava cansado, moroso na captação das idéias, desgostoso de não ver-lhes sentido. Mas devia ser um livro em que estava muito absorvido: nem sequer pressentira Magno e a mulher se aproximando. Claro que eles deviam pisar bem de leve, mas mesmo assim… Concentrado na leitura. O que não era raro. Tinha havido uma época em que praticamente se desligava do mundo, num autismo de sombras em que se deixava envolver com a estranha lucidez dos ébrios. As horas voavam, naquele tempo, tão diferente de agora. Então o fato devia ter ocorrido já há um bocado de anos.
E o local? Para que o sacrificassem daquela maneira era preciso que ele estivesse afastado das costas da cadeira. Também podia ser que a cadeira não tivesse encosto. Ou então ele estava debruçado sobre a mesa, no gabinete de estudos. Como, neste caso, ele não tinha ouvido Magno e a mulher abrirem a porta? Adormecera? Muito pouco provável. Assim não teria ouvido a mulher dizer “aproveita enquanto ele está lendo”. Depois, há muito tempo não usava o gabinete. Habituara-se a ler deitado, ao comprido na cama, o teto por trás do livro, emoldurando-lhe as histórias qual mortalha. O que reforçava a hipótese de o fato ter ocorrido se já se ia um tempão.
Mas, que fato? Olhos abertos na escuridão da noite de pesadelo, divagava em torno do sonho, impregnado da sua atmosfera torturante. Ora, os sonhos, os malucos espectros do inconsciente, as emboscadas dos anagramas subliminares … A realidade era outra: ali estava ele, vivo, não havia sangue no lençol, nenhuma dor nas costas, a mulher dormindo ao seu lado, tudo tão sereno e ajustado e insosso e cotidiano. Era preciso voltar a dormir, bem que a mulher tinha razão ao falar no seu problema da espinha, as pontadas secas e incômodas. Magno não existia. Nenhum punhal lhe lambera o sangue. Nunca.
Dormir. Foi conseguindo aos poucos, convidando a paz, expulsando os fantasmas do sonho ruim.
Acordou com a voz da mulher lembrando a hora do trabalho. Foi se levantando pesadão, ainda sentindo o estranho humor das sombra. Girou o botão do calendário – mais um dia ia começar sob o sol. O tempo. O tempo não retroage. Nunca.
Aí sentiu a dor. Funda. Fria e fina a lâmina lhe rasgava a carne, partia-lhe os ossos, entrava e saía do seu corpo, um corpo jovem, naquele tempo, um estirão de anos, voltas muitas no calendário. Antes de desabar no chão, o rosto sobre o livro ensanguentado, ainda ouviu a voz da mulher gritando por Magno.
*in Diário de Pernambuco, 16/08/98