Contos Nordestinos – Memorial Pernambuco (Don Antonio)

Arnaldo Tobias

O Homem que ainda não
havia lido Franz Kafka

Quando despertei pela madrugada com A Metamorfose sobre o peito ali permaneci da mesma maneira de quando antes Morfeu agarrou-me pelos olhos. Com as pálpebras ainda cansadas e um suor morno escorrendo entre o volume de letras e o tórax deixei-me ficar então deitado à rede de dormir. Uma modorra invadia-me de preguiça e eu ainda lembrava de haver chegado ao fim da leitura do livro. As minhas mãos espalmadas sobre o exemplar fechado no peito deixava-me essa vaga impressão. Procurava arrumar na mente confusa a triste história de Gregor Samsa. Mais tarde (quem sabe ?) recomeçaria a leitura interrompida pelo torpor 

CAPÍTULO DOIS

Depois de um bom espaço de tempo deitado e comprimido à rede resolvi pender uma perna com o pé até o assoalho e ficar balançando-me lentamente olhando o teto de uma só lâmpada acesa e calva ferindo-me a retina. Não tardou e logo ouvi que uma “coisa” arfando de dentro do livro não se libertava de um ressonar surdamente angustiado. Como também eu não conseguia despregar o dorso vergadosobre o côncavo da rede chiando baixinho nos prendedores. Suores frios vindos de vertigens tomavam já todo o meu corpo em macabros borbulhos. Um estranho prenúncio quebrava a rotina das outras noites em que me dava à leitura vã da mística e auto-ajuda. O teto pálido e a lâmpada subiam e por vezes eu via surreias galáxias na infinitude. De outras vezes o mesmo teto do quarto de um só vão descia e abafava-me na sua estufa. Perguntava-me na consciência aturdida e débil se aquele mormaço febril vinha de mim. Dentro do magro volume “a coisa” inchava e já começa a mastigar e deglutir as letrinhas para logo vomitá-las diluídas em gosma lúgubre sobre o lastro do meu peito chapiscando o meu rosto suado. Eu quero sair daqui – pedia-me num zumbido apertado e quase inaudível. Respondia-lhe com um fio de voz ainda compreensível – eu também.

CAPÍTULO TRÊS

Quando todo o pequeno exemplar de capa dura começou a escorrer e dissolver-se por cima do meu corpo a minha outra perna (não sei se voluntariamente) jogou-se para o outro lado da rede com as patas serrilhadas de uma barata rangindo o tosco assoalho. Uma laca brilhante e viscosa como borra de café umedecendo o fundo da rede criava agora uma sinistra e densa carcaça que emaranhava-se com o tecido têxtil e simultaneamente por toda ebulição fantástica. Lembro que o processo demorou para que os punhos velhos e encardidos da rede rompessem e em vir ao piso com o meu peso anormal. Mais trabalho deu-me para me revirar do decúbito frontal. Rodei o quarto todo ferindo-me as costas e as bordas nessa peleja. Interessante que os meus braços haviam tomado formas semelhantes às patas traseiras e duas antenas que apontaram das laterais da minha esquisita cabeça chocavam-se (a cada movimento trôpego de mim) de encontro às paredes e à única escrivaninha que se servia de mesa e espontâneos cochilos. Com as patas endurecidas e constituído todo o processo metabológico de que eu sou eu ainda posso intuir: estou dormindo e isso é um pesadelo do qual logo poderei me libertar. Deus não seria tão punitivo assim com a natureza humana: escolher um abjeto inseto a sentar-se à sua direita lá no céu. Afinal nascemos à sua semelhança. Farejei a soleira da única porta e perscrutei o pequeno e estreito corredor com as antenas volteando nervosas. Então era descer os três lances de escada do precário prédio. Seria melhor que a luz do corredor apagasse. Faltasse enérgia. Faltou. Era pesadelo mesmo. A medonha aberração gratificara-se ali.

CAPÍTULO QUATRO

Porque a cal nas paredes trincadas do corredor não me aguentasse nas sis patas (cresceram-me mais duas pernas de barata dos lados do tronco) foi que desci os três lances da escada machucando as bordas e as duras e abaluadas nervuras do ventre. As baratas voam às vezes dos seus esgotos ou lixos. Joguei os ombros com as clavículas e homoplatas e esperei o zum das asas. E nada. No peso formidável caia adiante sem forças. Roguei às trevas que embrulhavam o resto do meu reciocínio de humano que tudo aquilo não passasse mesmo de um mórbido pesadelo. A minha voz em balbicios não mais peia “quero sair daqui”. A metamorfose processara-se no seu engenhoso e sórdido caprinho.

CAPÍTULO CINCO

Já longe do velho prédio cabaleando sem se sustentar nas pernas um mendigo bêbado veio e foi recostando-se pela minha pata dianteira esquerda. Para não tombar de vez o desafeto enganchou-se numa minha antena pelo suvaco azedo que logo despertou-me a gula de blatrádios. Deu trabalho. Arrastei o meu ex-semelhante e à escuridão da saída da enorme galeria sanitária que vinha na cidade grande, cuidei de limpar os trapos do velho moribundo. Sou uma considerável barata que não se delicia com roupas sujas e ensebadas de enxúndias. Subterraneamente nessas galerias e fossos eu sobreviveria à hecatombes e dilúvios e ao homem combusto que fui. Minha primeira refeição foi fácil. Agora era estudar a próxima vítima enquanto com as patas dianteiras puxava da engrenagem da boca a sobra de cabelos do ex-bêbado e mendigo.

in Diário de Pernambuco, 23/08/98