::::: Literatura virtual : 10 contos de rés :::::

DE MADRUGADA A GENTE CHEGA CEDO! 

– Isso é hora de chegar, Godofredo? – Qué isso, estou é chegando cedo; são três horas do dia! – Engraçadinho, você vai levar pau, seu filho da puta! – Você não pode me culpar, não! E D. Joana corre pela casa toda atrás do Godofredo, que tenta se explicar: – Peraí Joana, assim você acorda a vizinhança toda! – Toma seu miserável – e lá vai uma panela na cabeça do Godofredo, que fica acuado no canto da sala, esperando o golpe de misericórdia de d. Joana, que, com as mãos nos quadris, dá o maior baile: – Eu aqui me matando de trabalhar, me preocupando com você, pensando em telefonar para polícia, necrotério, pronto socorro, o diabo a quatro e o senhor farreando poraí. FARREANDO! – Não, Joaninha, deixa eu explicar… – choraminga Godofredo, temendo o pior. – Fala, seu cabra safado, até os condenados merecem a última fala. Fala, enquanto não apanha – ameaça Joana com o ferro de engomar na mão escondida atrás das costas. – O negócio é que eu peguei o ônibus pra vir pra casa e ele não conseguiu entrar na vila, por causa daquele atoleiro, você sabe, né.  – Sim, e daí? – E daí, com essa chuva toda, esses buracos, estava o maior lamaçal. Então o ônibus não conseguia subir a ladeira pra vila. Aí o pessoal todo teve que descer, o motorista pediu desculpas pelo vexame dizendo que o dono da empresa só deixava o ônibus seguir até ali, por causa da estrada ruim.  – Sim, e daí, isso é desculpa para chegar essa hora? – E daí que a gente desceu, né, e você sabe que é mais de uma hora para chegar até aqui a pé, né. – Só quero onde você quer chegar… Uma hora até aqui… E são três da madrugada!…. – E daí, não foi fácil driblar buracos, poças de lama, as ruas escuras, e a gente, que era eu, dois caras e uma senhora, vinha com medo por causa das ruas sem luz. Por causa dos ladrões. Aí deu o maior pé d’água e a gente teve que correr, e não deu outra: ficamos todos molhados, molhadinhos. E D. Joana, com a maior paciência ouvia, incrédula, a história do pobre, mas esperto, Godofredo. – E o frio tava horrível. Nós paramos numa barraquinha que tava já fechando porque tava sem freguês, então pedimos a água que passarinho não bebe, pra esquentar, né. Até a senhora que tava com a gente tomou coragem e bebeu uma! O frio tava mesmo grande. – É, eu me lembro que choveu muito no meio da noite. Mas já são três das madrugada… – E daí… – já começava a suspirar aliviado o Godofredo. – E ali, num lugar mais seco, mais aconchegante, a gente começou a conversar, coisa à toa, sabe. E a chuva não passava. Teve uma hora que o dono do bar começou a meter o pau nas ruas esburacadas, na falta de iluminação que espantava os fregueses, nos lixos acumulados nas portas das casas. E mostrou o maior monte de lixo que eu vi na minha vida, bem em frente ao bar do homem. O dono lamentando a falta de compreensão das pessoas, que não tinham espírito de solidariedade. Aí, eu e os meus colegas do ônibus, dissemos que tudo isso era mentira, que todo mundo queria colaborar, faltava apenas entendimento. Que todo mundo colaborar, colaborava. E, para dar exemplo, resolvemos mostrar ao homem o que era solidariedade. Por coincidência o homem tinha uma pá e duas enxadas e fomos pra lá, pro monte de lixo. Escolhemos um lugar junto e começamos a cavar um buraco! – Cavar pra quê, Godofredo? – pergunta a agora interessada Joana. – Bem, se o caminhão do lixo não passava ali – continua Godofredo, satisfeito que o seu plano estava dando certo – o jeito era dar um fim ao lixo, cavando um buraco e enterrando o monturo. – E vocês passaram a noite toda, até essa hora, cavando um buraco para enterrar um monte de lixo? – Ah! Jô (colocando o braço por cima dos ombros da Joana). Foi lindo! Com a zuada que a gente fazia, os vizinhos foram acordando, viram o nosso exemplo, perguntavam o que tava acontecendo, se vestiam e ajudavam a gente. A chuva já tinha passado, né!? Aí todo mundo se organizou, cavou aqui, ali, a rua ficou limpinha, limpinha. Entendeu, agora, porque cheguei tarde? – Que maravilha, Godofredo, que exemplo. Você sempre foi uma pessoa prestativa. Tá perdoado! – Obrigado, negrinha, agora dá um cheirinho no Godofredo aqui, pra gente ir dormir…  E Joana dá um abração no Godofredo que suspira aliviado do pior. – Godô, você tá perdoado de ter chegado em casa essa hora… – Mais uma vez obrigado, Jô… – suspira feliz, o Godô. … agora, Godofredinho, comece a explicar essa marca de batom aqui na sua camisa!