(gênero inventado por romancista brasileiro)
Vital Corrêa de Araújo*
A romancista Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque que também é psiquiatra e membro do Instituto Arqueológico Pernambucano acabou de publicar Memórias de Isabel Cavalcanti (Edições Bagaço, 2006). É o seu quarto livro (O Magnificat: Memórias Diacrônicas de Isabel Cavalcanti, Tempo Brasileiro 1990; Luz do abismo, Edições Bagaço, 1996 e A Girafa, 2005 e Príncipe e Corsário, A Girafa, 2005). Sua obra ocupa um nicho especial face ao seu caráter memorialístico fundado em vasta pesquisa histórica e genealógica.
Em seu excelente romance Luz do abismo – que o crítico Wilson Martins colocou entre as melhores obras literárias ficcionais brasileiras -, a escritora alcança um ponto crucial na arte narrativa; as lindes entre a realidade ( a verdade) e o ficto ( o inventado) são frágeis e confusas, há uma interpenetração do acontecido com o imaginado tal que o leitor se sente guinado a um patamar de emoção dificilmente alcançado pela ficção brasileira atual, vez que Maria Cristina abole todo o artificialismo e conjuga o novo verbo de história e invenção sem cair em um realismo fácil ou mesmo mágico. O enredo das Memórias de Isabel Cavalcanti enlaça a figura de sete mulheres: Catarina, filha de princesa tabajara e de Jerônimo de Albuquerque, irmão de dona Brites, mulher de Duarte Coelho o donatário de Pernambuco; Isabel, a narradora, que centraliza as peripécias epistolares do romance, ora escrevendo, ora recebendo cartas, de um modo diacrônico, isto é, sem a necessária observância da sincronia física ou sucessão cronológica exata, o que já distingue a autora pela capacidade de imaginar e montar a enunciação do romance com mecanismo tão singular; Leonarda; Maria; Ana de Nazaré e Gertrudes a matriarca, que em 1770 imperava na solidão de um lugar chamado Vertentes (a Macondo de Maria Cristina). Ela dá origem ao ramo cuja conjunção de sangue com os Correa de Araújo, gera a moderna família da autora. A sétima mulher admirável, pilar, âncora, o alicerce, e pódio do romance é a própria autora, que, com denodo, pujança, teimosia Cavalcanti, perseguiu e conquistou o objetivo de fazer a biografia de uma família. Desde os Albuquerque vindo de Jerônimo, o Adão Pernambucano aos mais remotos Cavalcanti, de Guido, amigo de Dante. Maria Cristina enriqueceu ou mesmo inaugurou o gênero literário ao utilizar o material das pesquisas genealógicas para montar um romance, sem que não se saiba o que veio antes: a ficção ou o relatório. Esperava-se que a autora transcrevesse o trabalho na forma nada “romântica” de livros de linhagens em que desfilam series intermináveis de nomes arrolados em relações monótonas e inacabáveis, labirintos de gerações entrelaçados. Ao contrário, em uma iluminação, estado próprio do romancista nato, escreveu este livro vasado em linguagem lírica, mas objetiva, narrando a saga de famílias pernambucanas ao largo de quinhentos anos, com punho firme e letra atilada. Além de ser uma história coerente e compacta, nunca mecânica ou serva de interesses familiares ou movida por questões particulares, a escrita de Maria Cistina não descreve, mas impõe o desenvolvimento familiar em conúbio com o elvolver da narrativa. Foge de simetrias, de homogeneidades, de lassas antologias; para ela, não o idêntico, porém o outro, não o mesmo, mas o diferente é o que interessa; este romance não é um ponto de encontro, mas de transcendência da família. Ela não narra ou descreve os eventos sucessivos que montam o quebra-cabeça genealógico, ou seja, diz não á ilusão da identidade ou á obsessão do sincrônico, embora como técnica da alma saiba que cada um de nós é uma confederação de eus (Fernando Pessoa) ou, por isso mesmo, lida com personalidades passadas e vence a tentação de reduzi-las ao idêntico. Graças ao impulso ou compulsão da alteridade, Maria Cristina alcança o necessário grau de verossimilhança obrigatório na ficção e complementa o fato com atos de invenção, que são a isca para o leitor. Isso sem prejuízo da compreensão da saga familiar. Urde e borda. Manipula e trama os fios da linhagem, com precisão lírica e histórica. O estado de transcendência que a autora atinge em sua escrita ocorre quando ela foge da pura imanência que caracteriza ou ordinariza as narrativas com este escopo; é que transcende o passado (sua matéria) em direção ao futuro invertendo o processo como cabe a uma nova criação do romance. Maria Cristina sonda o real estratificado atropelado pelo tempo, mas intacto (nos atos sociais e individuais dos grupos familiares escavados), desde que os instrumentos de prospecção revistam-se do preciso e delimitado grau de retrospecção e apontem o horizonte dos estratos de nomes e vidas que ela metodicamente levantou ao longo de vinte anos. O resultado é uma sinfonia em que seis mulheres são regidas por outra, a autora. Os ouvintes são a História de Pernambuco. _____________________________________________ Vital Corrêa de Araújo é poeta e Presidente da União Brasileira de Escritores – PE