Christian Rocha Julho de 2001 Quando Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, escreveu o conjunto de ensaios reunidos contemporaneamente sob o título de “A arte de ter razão”, fazia idéia do tipo de arsenal intelectual que estava disponibilizando. A obra, um diminuto e aparentemente inofensivo livro de bolso, traz 38 estratagemas que, se seguidos à risca, podem conduzir qualquer charlatão à condição invejável de ícone intelectual. “A arte de ter razão” é um pequeno tratado de dialética erística, isto é, a capacidade de, através de armadilhas retóricas, “puxar a brasa para a própria sardinha”, independentemente de quem esteja ao lado da verdade. A obra de Schopenhauer torna possível vencer um debate sem a necessidade de ter razão ou sem qualquer respaldo do raciocínio lógico ou da argumentação coerente. Os 38 estratagemas são tão antigos quanto sua aplicação, já profundamente enraizada na mente maculada de alguns advogados, publicitários, políticos, entre outros “profissionais da argumentação”. Os políticos, por exemplo, de maneira intuitiva já fazem uso ostensivo do último ardil, cruel e definitivo: “Quando percebemos que o adversário é superior e que não ficaremos com a razão, devemos nos tornar ofensivos, insultantes, indelicados.” – técnica que Schopenhauer classificava como “ad personam”, isto é, quando o objetivo é atingir exclusivamente o adversário e não suas idéias e seus argumentos. Todo ataque cria a necessidade de defesa, o que expõe ainda mais os pontos vulneráveis do defensor e enfraquece seu discurso. Todos aqueles que já assistiram a algum debate político em época de eleições sabem do que estou falando. Tal é a estratégia freqüentemente utilizada em câmaras legislativas. A crítica feita aos projetos de alguns vereadores é prontamente reduzida à condição de ataque pessoal, redução suficiente para invalidar a crítica. Esta falsa suficiência argumentativa – que, ao contrário, não tem nada de argumento – elimina desde cedo toda e qualquer possibilidade de debate e transforma as discussões políticas em picardia, em mero cara-ou-coroa. Outra estratégia comumente usada é a de responder a tais críticas com um discurso populista, emocionado e deslocado do objeto em questão, novamente com vistas a causar nos ouvintes a impressão de que se trata de uma causa justa (por ser popular) e que o crítico, neste caso, não passa de um traquinas. Seguindo tal lógica, se uma pessoa questiona, por exemplo, um projeto que propõe a construção de um museu, ela pode ser acusada de ser “inimiga da cultura” e a acusação seria facilmente sustentada pela importância que a cultura tem para um povo, pela necessidade de lazer etc., não importando discutir o museu em si. Após uma longa papagaiada digressiva sobre cultura popular, ouvintes e interlocutores estarão concordando com o museu. Além da digressão, pode-se ainda citar alguma autoridade relacionada à cultura ou à política, como Maquiavel, Francis Bacon ou Baltasar Gracián, como meio de reforçar uma idéia, por mais mirabolante que seja. Simples assim. O que vi na minha curta experiência em sessões de câmara comprovou a capacidade que alguns vereadores têm de transformar o debate político (o estudo de propostas sociais) em disputa política (o confronto de idéias mal-elaboradas e predispostas a priorizar egos em detrimento de propostas sociais). Deste modo, sabe-se, não se faz política, faz-se politicagem. O deslocamento dos temas, a derrocada da argumentação lógica, enfim, a crise do pensamento chegou até mesmo nos lugares onde se espera que eles existam em abundância e exemplarmente. Às vistas do povo, tudo isso não passa de questão de estilo. O que interessa é que o processo democrático esteja acontecendo: projetos são propostos e colocados em pauta, seus prós e contras são considerados numa breve discussão e em seguida são votados e, ao fim, são aprovados ou recusados, em função do número de votos. Mas trata-se de um oligarquismo travestido de democracia: os projetos nascem do modo como este ou aquele vereador confrontou-se com determinado problema social, isto é, são frutos de reações egocêntricas, nunca de iniciativas observadoras; a discussão é conduzida pelas idiossincrasias dos edis, um dos pilares do populismo histórico; a votação é limitada ao binômio levantar-se/sentar-se, o que em muito lembra os polegares dos imperadores romanos. Enfim, tudo é feito não para colocar em dúvida os processos legislativos, mas para reduzi-los ao mínimo necessário e para converter em certeza qualquer dúvida que venha a surgir em relação a tais procedimentos. É sintomático que alguns eleitores reacionários, silenciosamente satisfeitos com a situação reinante, aleguem que o voto dado aos que aí estão é suficiente para calar qualquer voz de protesto. Isto é, novamente através de um ardil erístico, confunde-se voto com concordância. Em posse de tal argumento, estendido até os cômodos limites da insanidade retórica, qualquer vereador sente-se no direito de fazer o que sua vontade determinar durante os quatro anos de mandato. Simples assim. A quem percebe isso tudo – o naufrágio intelectual da maioria das casas legislativas brasileiras e o apoio irrestrito de uma massa anônima e ignorante, sem a qual não existiriam votos – o desejo é o de alheamento, seguindo à risca aquilo que Schopenhauer sugeria como réplica à estratégia “ad personam”: não disputar, sobretudo com aqueles que têm mais poderes do que nós, é a melhor maneira de evitar que sejamos derrotados e que eles saiam vitoriosos. Mas aqui, o alheamento também é facilmente tomado como consentimento e assim nosso silêncio estaria apoiando as iniciativas de qualquer borra-botas.
Qual a saída? Vale aqui o clichê: exercício de cidadania. Não significa necessariamente ter que conhecer as microvilosidades do universo político, imergir em debates exaustivos, cansar-se pela defesa de causas. Causa, só há uma: a cidade, com seus cidadãos, sobretudo aqueles que têm necessidades urgentes e básicas. Deste modo, basta fazer algo, mostrar com atitudes aquilo que está na raiz de seus princípios. Melhor do que ter a verdade e a cumplicidade social como parceiras nos discursos é tê-las nas ações. Exatamente o contrário do que vemos em alguns vereadores.
|