Barbosa Lima Sobrinho
Desde o Recife, as manifestações provocadas pela morte de João Pessoa em 26 de julho de 1930 tomaram feição fantástica de luta, de revolta, de pesar. E seria apenas o início de uma série de demonstrações como o Brasil dificilmente verá iguais.
Na Paraíba, ao ter notícia do crime, a multidão ia para as ruas, expandindo-se em depredações contra os adversários. Perto de duzentos presos saíam da cadeia pública, e reunindo-se à turba enfurecida, caíam sobre as propriedades dos inimigos políticos, para destruí-las, para reduzi-las à cinzas. De toda a parte, ouviam-se tiros, deflagração de bombas de dinamite. As labaredas dos incêndios ateados pelo povo dentro em pouco subiam na treva da noite, como se outra pira não parecesse digna do morto que todos choravam. O governo nada podia fazer. A maior parte da polícia estava no sertão, na luta contra José Pereira; o exército não saía dos quartéis, para não irritar ainda mais, as expansões dessa noite trágica. Os próprios bombeiros não acudiam aos incêndios, pois que a multidão lhes estragara os aparelhos no desejo de evitar que pudessem atalhar a obra vingadora das chamas.
Imaginemos uma cidade, em que todos os habitantes houvessem perdido, no mesmo dia e na mesma hora, o parente mais querido e mais amigo. Reunamos todas essas almas angustiadas numa procissão colossal. Os oradores trocam as palavras por soluços, que se comunicam aos ouvintes e juntam-se no soluço enorme de toda a cidade; os músicos não conseguem tirar dos pulmões o sopro necessário aos instrumentos, tanto é a comoção que lhes aperta a garganta. Quando o navio desamarrou de Cabedelo, trazendo para o Rio o corpo do Presidente assassinado, a multidão imensa, acumulada no cais, alucinada pela dor de quem sente partir-se o coração, exclamava, numa voz que o desespero tornava soturna :
– ADEUS, ADEUS, ADEUS, JOÃO PESSOA !
Daí por diante, de Cabedelo ao Rio, as manifestações repetem-se, num tom pouco menos dramático do que na Paraíba ou no Recife. Na Capital da República, sob os olhos do governo do país, o cortejo que se formou foi dos maiores que já desfilaram em tais circunstâncias. Nenhuma caravana política de tantas que percorreram o Brasil na propaganda das candidaturas aliancistas, pôde fazer pela causa o que esse cortejo fúnebre vai conseguindo.
Na Câmara dos Deputados, abrindo o debate a propósito do assassinato de João Pessoa, o líder gaúcho, sr. Lindolfo Color, no termo de um libelo contra o sr. Washington Luiz, fazia vibrar no recinto uma imprecaução acusadora: “Caim, que fizeste de teu irmão? Presidente da República, que fizeste do Presidente da Paraíba?”
A exaltação de ânimos permitia o exagero, que, concordava perfeitamente, com as exigências dessa hora dramática.
Crime e paixão
Parahyba, Mulher Macho combina história de amor com fatos marcantes do País Consagrado em 1983 no Festival de Cinema de Cartagena, na Colômbia, em que levou todos os principais prêmios, o empolgante Parahyba, mulher macho, de Tizuka Yamazaki, é o filme-tema do sexto fascículo da coleção ISTOÉ – cinema brasileiro. O papel principal é de Tânia Alves, escolhida como a melhor atriz do festival. No auge da sua beleza, a artista carioca tem uma atuação arrebatadora como a libertária Anayde Beiriz, professora transgressora que se tornou um dos pivôs do violento assassinato de João Pessoa, na época presidente da Paraíba, cargo hoje equivalente ao de governador. O sinistro foi decisivo para a eclosão da Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas ao comando do País. Em meio a turbulentas disputas políticas no Estado nordestino, a sensual e explosiva Anayde vive um tórrido romance com o advogado João Dantas (Cláudio Marzo), enfrentando assim a moralista sociedade paraibana de então. Dantas vive uma situação paradoxal. Quando não está desfrutando das ardentes carícias de Anayde, faz ferrenha oposição a João Pessoa (Walmor Chagas), de quem ela é partidária. Incomodado com os ataques do advogado, o governador manda a polícia invadir seu escritório. Entre o material apreendido, ela encontra poemas e fotografias que expõem as picantes intimidades do casal. Furioso com a ofensa, Dantas mata seu oponente com quatro tiros. O assassinato de João Pessoa acirra os ânimos políticos na Paraíba e provoca uma série de revoltas que se alastram pelo País. Dentro deste quadro, Tizuka Yamasaki traça um movimentado painel do período, com direito a violentos confrontos entre os partidários de João Pessoa e seus rivais conservadores. Toda a crise é dividida com cenas do tempestuoso amor de Anayde e Dantas. O calor dos atritos políticos e das sequências amorosas do casal faz o Nordeste nunca parecer tão quente. NEGO
A palavra “Nego”, na bandeira da Paraíba, simboliza a rejeição do político João Pessoa à candidatura de Júlio Prestes à Presidência. O vermelho é o assassinato de João Pessoa; e o preto, o luto por sua morte. A palavra NEGO consta na bandeira da Paraíba para registrar um fato histórico que teve muita repercussão nas décadas de 20/30. João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque era Presidente (Governador) da Paraíba desde 22.10.28. João Pessoa tinha muito prestígio por ser sobrinho do ex-Presidente Epitácio Pessoa e Ministro do Supremo Tribunal Militar, daí ter sido indicado para presidir a Paraíba. Na época, era Presidente da República Washington Luiz, paulista. Em 1929, iniciou-se o processo de eleição para o novo Presidente da República. Existia a chamada aliança café-com-leite, pela qual São Paulo e Minas se revezavam no exercício da Presidência da República: esse acordo era apoiado por Epitácio Pessoa. Washington Luiz rompeu o acordo e indicou como seu candidato à Presidência outro paulista, de nome Júlio Prestes. João Pessoa, inconformado, NEGOU o apoio da Paraíba ao candidato Júlio Prestes, apoiando a candidatura de Getúlio Vargas, gaúcho, lançado pelo Presidente de Minas Gerais, Antônio Carlos. Foi formada então a Aliança Liberal, composta dos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, sendo João Pessoa escolhido candidato a vice-presidente na chapa aliancista. João Pessoa teve a coragem cívica de passar um telegrama ao Governo Federal negando qualquer apoio, daí o famoso NEGO, inserido na bandeira da Paraíba, num vermelho de sangue e preto de luto; O NEGO de João Pessoa foi um gesto de altivez que teve repercussão nacional, sendo registrado como um fato histórico: mudou a bandeira da Paraíba que, no seu todo, representa uma homenagem a João Pessoa, assassinado logo após, em 26.07.30, ainda no exercício do governo do Estado da Paraíba. A bandeira foi idealizada nas cores vermelha e preta, sendo que o vermelho representa o sangue derramado por João Pessoa e o preto, o luto que se apossou da Paraíba com sua morte.
Todos esses fatos desencadearam a Revolução de 1930, que culminou com a deposição de Washington Luiz em 24.10.30.
Afinal, por que João Pessoa foi assassinado? Esse crime merece uma reconstituição, não só pelos seus desdobramentos e conseqüências, como também pela importância das pessoas nele envolvidas: a vítima, João Pessoa, presidente de um estado; e o assassino, João Dantas, um advogado paraibano, sertanejo da cidade de Teixeira e amigo de José Pereira, o líder de Princesa, e de João Suassuna, o líder de Catolé do Rocha. João Duarte Dantas fazia violenta oposição a João Pessoa. Um apartamento seu, localizado em sobrado da então Rua Direita, 519 (hoje Duque de Caxias), bem no centro da capital, próximo do Ponto de Cem Réis e do palácio onde trabalhava João Pessoa, foi invadido pela polícia no dia 10 de julho, sem que se saiba até hoje se com ou sem o conhecimento prévio do presidente paraibano. Livros, documentos e móveis de João Dantas foram queimados na calçada fronteira. Informa-se sem confirmação que se aprenderam cartas íntimas entre João Dantas e sua noiva Anayde Beiriz. O jornal A União, que já era então o órgão oficial do governo da Paraíba, publicou uma série de acusações gravíssimas a familiares de João Dantas, inclusive ao patriarca, Dr. Franklin. Ódio mortal passou a jogar um João contra o outro. Amigos preocupados com aquela rivalidade conseguiram que o Dantas se retirasse para Olinda, em Pernambuco. O Presidente João Pessoa preparava-se para receber a homenagem de um grupo de paraibanos pelo famoso Nego, inscrito como símbolo na bandeira da Paraíba, quando anunciara a Washington Luís a sua definitiva recusa em apoiar Júlio Prestes. Precisamente no dia 26 de julho, e acompanhado apenas do seu motorista, foi ao Recife numa viagem particular, amplamente divulgada pelos jornais locais, a fim de visitar um amigo enfermo, o Juiz Francisco Tavares da Cunha Melo, internado no Hospital Centenário. O Estado de São Paulo publicou no dia 3 de outubro de 1930: “Tudo indica que João Pessoa fora ver uma cantora com quem vinha mantendo romance secreto e isto explica a sua ida à Joalheria Krause.” Segundo os escritores paraibanos Horácio de Almeida e Amarýlio de Albuquerque, referidos por José Joffily no livro Anayde – Paixão e Morte na Revolução de 30 – Ed. Record – Pág. 49, essa cantora era o soprano Cristina Maristany. No seu refúgio de Olinda, João Dantas armou-se de um revólver e rumou para o centro da capital pernambucana. Estava acompanhado do cunhado Moreira Caldas e não lhe foi difícil vislumbrar João Pessoa bem no centro da Confeitaria Glória. Aproximou-se dele: – João Pessoa? Eu sou João Dantas. Vários tiros foram disparados por João Dantas e por Moreira Caldas, não se tornando possível, assim, caracterizar qual tenha sido a bala fatal que lhe varou as costas. Ao tentar a fuga, João Dantas foi ainda atingido de raspão na cabeça com um disparo feito pelo motorista de João Pessoa. Em seqüência, diversas outras mortes trágicas Presos, João Dantas e Moreira Caldas foram recolhidos à Casa de Detenção, do Recife, onde ambos, no dia 3 de outubro, logo no início da Revolução de 30, viram-se degolados a cortes de navalha e suas cabeças remetidas à Paraíba. Versão diferente dá conta de que eles se suicidaram com golpes do mesmo bisturi, primeiro Dantas, depois Caldas. Para sustentar a tese desse suicídio-a-dois, José Joffily revela no seu livro, pág. 53, a existência de bilhetes deixados por ambos sob os travesseiros: “Como poderiam estes documentos de despedida, escritos em instante derradeiro, apresentar a correta redação, o talho das letras e a autenticidade das assinaturas, comprovadas em perícia, se tudo fosse escrito no tumulto de uma feroz degola e trucidamento?” Cita a confidência de João Dantas ao seu irmão Manoel, como prova do seu intuito de suicidar-se: “- No caso de um movimento armado e vitorioso, eu não me entrego. Mato-me!” “- E tens ao menos com que te matar?” “Ele abriu a gola do pijama e retirou dele um afiado bisturi.” Três dias depois aconteceu outra morte dolorosa: a da noiva Anayde, uma moça de 25 anos, bonita, moderna e avançada para a época, que, já tendo ingerido o tóxico peçonhento de uma cobra, procurou refugiar-se no Asilo Bom Pastor, à Rua Benfica, bairro da Madalena, Recife, onde deu entrada às 11 horas do dia 6 de outubro para, mesmo socorrida pelas freiras, morrer três horas depois. Causa mortis, atestada pelo IML local: envenenamento. Anayde, uma órfã de pai e mãe, execrada com o sinete daquela paixão por João Dantas, foi enterrada no cemitério de Santo Amaro, como mendiga, sem endereço e sem nome conhecidos, de acordo com sua certidão de óbito. A quinta vítima dessa tragédia shakespeariana foi o ex-governador e já então Deputado Federal João Suassuna, assassinado, por Miguel Laves de Souza, com apenas um tiro, na esquina da Rua Riachuelo com a dos Inválidos, Rio. O parlamentar, amigo de João Dantas, viera ao Distrito Federal na esperança de ser recebido pelo Presidente Washington Luís, já na agonia final de seu governo, para fazer-lhe um relato sobre a situação paraibana. Sobre esse assassínio de Suassuna, seu filho, Ariano Suassuna, acadêmico e escritor (Auto da Compadecida), denunciaria num artigo publicado pela Folha de São Paulo, em 11 de setembro de 1980: “Por ocasião dos acontecimentos de 30, nos quais, entre outras coisas, meu pai foi assassinado, a mando de pessoas que apoiavam Getúlio, éramos todos, da nossa família, antigetulistas.” Pelo menos aparentemente, a morte de João Pessoa não passara de um crime passional, transformado em tragédia política. O navio “Rodrigues Alves”, que transportou seu corpo para o Rio, fez escalas em Salvador e Vitória, onde multidões acorreram ao Cais do Porto , para ovacioná-lo. No Rio, em plena Avenida Rio Branco, o caixão foi saudado por Maurício de Lacerda:
– Cidadãos, mirai este esquife. Morrei por este homem que por vós morreu. Ajoelhem-se e deixem passar o cadáver deste Cristo do civismo e ergam-se, depois, para ajustar contas com os judas que o traíram.”…