É das coisas mais malucas e assombrosas que já se fez em música brasileira. Em 1973, o paraibano Zé Ramalho estava cansado de animar bailes em bandas de iê-iê-iê de João Pessoa e Campina Grande. O pintor Raul Córdula lhe avisou que no Recife havia um pessoal diferente, conhecido pela alcunha de udigrudi pernambucano. Foi pra lá. O guru era Lula Côrtes, um hiperativo que dividia seu tempo entre o desenho e o seu inseparável (e legendário) tricórdio. Este disco não foi a estréia de Zé. Ele havia entrado no estúdio em 1973 para participar de uma maluquice coletiva chamada Marconi Notaro no Sub Reino dos Metazoários. Lula Côrtes se firmara como líder da turma durante a I Feira Experimental de Música do Nordeste (11/11/1972), também conhecida como Woodstock cabra da peste. “O ácido era distribuído ao público, cerca de duas mil pessoas, dissolvido num balde com K-suco”, testemunhou depois Marco Polo, futuro membro da Tamarineira Village, numa entrevista ao jornalista pernambucano José Telles (autor de Do Frevo ao Manguebeat, Editora 34). No início de 1974 Zé foi apresentado a Lula, que vivia com a namorada Kátia Mesel no então distante subúrbio de Casa Forte (que virou bairro nobre do Recife). Lula lhe falou da Pedra do Ingá e da idéia de fazer um disco inspirado no sítio arqueológico de Ingá do Bacamarte. O disco foi feito em 1975 no estúdio da Rozenblit (empresa fundamental para a história da música pernambucana) e lançado imediatamente. Mas na terrível enchente de julho daquele ano no Recife, as águas do Capibaribe invadiram a fábrica e destruíram praticamente toda a prensagem do disco, com a exceção de 300 cópias que haviam sido levadas para a casa de Lula e Kátia. Dessas 300 cópias nasceu o mito, que é tão incrível que há gente que não acredita. Hoje é possível encontrá-lo em CD, lançado pela Shadoks, um obscuro selo alemão. Aí no Brasil o disco sai por um preço bem salgado. No site da CliqueMusic é possível ouvir os primeiros 30 segundos de cada faixa. E também está disponível por aí na rede, claro, para quem tem as manhas. O LP duplo t em quatro partes: Terra, Ar, Fogo, Água. 11 canções no total, sendo o “Ar” representado só por duas faixas. “Trilha de Sumé”, com 13 minutos, passa por tambores, cantorias em marcação de coco, flauta, saxofone, o tricórdio de Lula e a guitarra distorcida de Zé Ramalho. É impossível saber o que vai acontecer no momento seguinte. As seqüências melódicas são interrompidas por cantorias de pássaros, sons de cachoeiras e outros barulhos da natureza que vão pontuando a viagem. “Harpa dos Ares” é uma bela peça instrumental com diálogo de cordas, flauta e canto de pássaros. O fechamento da parte “Terra” é com “Não existe molhado igual ao pranto”, melodia arrastada à base de cordas, com gritos esganiçados ao fundo (sugerindo tortura, talvez) e solos de sax. O barítono rouco e arranhado de Zé ecoa melancólico: Não se escuta da terra quem for santo / Não se cobre um só rosto com dois mantos / Nem se cura do mal quem só tem pranto / Nenhum canto é mais triste que o final.
A seqüência “Fogo” começa com uma canção intitulada com versos que depois ficariam famosos na voz de Zé: “Nas paredes da pedra encantada / os segredos talhados por Sumé”. Essa é um petardo, um rock alucinógeno, com bateria, baixo, órgão. Essa seqüência termina com “Maracas de Fogo” e “Louvação a Iemanjá”, um canto responsorial sobre um batuque polirrítmico bem próprio dos sons dos orixás. Mais três faixas completam o disco, louvando a água: ali de novo predominam as cordas, pontuadas por ruídos aquáticos vários. Destaque para “Pedra Templo Animal”, um xaxado psicodélico.
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