PEQUENO GUIA DA CIDADE DO RECIFE |
Por GILBERTO FREIRE Os sábios que classificam as pessôas em introvertidas e extrovertidas poderiam classificar as cidades de modo semelhante. Pois, na verdade, enquanto umas se entregam ao primeiro olhar de turista empenhado em conquistar donjuanescamente paisagens, outras se escondem do curioso ou do estranho como se fossem umas mouras: mouras encapuçadas. O Recife é assim: cidade que antes se esconde dos admiradores que se oferece à sua curiosidade. Daí o turista precisar aquí de guia mais do que no Rio, por exemplo; ou mais do que na Bahia: outra cidade aberta e cenográfica. No Rio, mal o estranho chega à cidade, o Pão de Açúcar se ostenta à sua admiração, por um lado, e Copacabana, por outro, logo seguidos pelo alto da Glória, pelos verdes de Santa Teresa, pelos braços abertos do Cristo do Corcovado. A Guanabara não se faz de rogada: anuncia-se de longe como uma das mais belas bahias do mundo. No Recife, não: nenhuma igreja, nenhum morro, nenhum monumento, nenhuma bahia se apressa em oferecer-se à admiração do turista. É meio cego pelo excesso de luz – muito intensa no Recife – e meio cego pelo excesso de sombras em que as igrejas mais bonitas se escondem como se não quizessem ser vistas senão pelos seus devotos, que o turista tem que descobrir, seguindo a palavra de um guia idôneo ou vagando às tantas pelas ruas, os melhores encantos recifenses. Sendo tanto no exterior como no interior, uma das mais belas igrejas do Brasil e até da América, São Pedro dos Clérigos, por exemplo, é uma espécie de maria-borralheira entre suas irmãs: escondida num velho páteo de casas todas simples e sujas de velhice. Um velho páteo onde à noite ainda há quem venda pelas esquinas, peixe frito e tapioca. A Conceição dos Milagres é outra linda igreja do Recife que quase não se destaca dos sobrados burgueses seus visinhos para anunciar-se a igreja principesca que é, com expressões de arte barroca que ainda há pouco atrairam o entusiasmo de um historiador de arte – o Professor Mário Chicó – habituado a admirar o barroco em várias partes do mundo; e com umas pinturas no tecto, da Guerra Holandesa, que merecem a atenção do turista. A Capela Dourada é ainda outro interior principesco de igreja recifense que se esconde dos turistas; mas que o turista deve perseguir até surpreendê-la um dia em todo o seu esplendor. Num dia de casamento elegante ou de Primeira Comunhão, por exemplo. Como faz parte do conjunto formado pelo Convento de Santo Antônio e pela Ordem Terceira de São Francisco do Recife – o Convento de Santo Antônio comemorou em 1956 o seu 350º aniversário – o turista, ao visitar a Capela Dourada, visite aquele conjunto inteiro: é um dos mais históricos e, ao mesmo tempo, um dos mais artísticos do Brasil. Fica à Rua do Imperador: visinho de um Palácio da Justiça que é uma expressão do máu gosto que dommou a arquitetura civil no Brasil antes dos Le Corbusier dos Lúcio Costa e dos Oscar Niemeyer virem angèlicamente em seu auxílio. Na mesma rua está a Biblioteca Pública. Está o edifício do Jornal do Commercio um dos dois grandes jornais do Recife. Está a Secretaria da Fazenda. Está o Gabinete Português de Leitura. E nela ainda se vêem alguns bons sobrados antigos: dois ou três, de azulejos. Visite também o turista o Convento do Carmo: seus lindos jacarandás merecem alguma atenção. Fica no Páteo do Carmo, do qual se vai, da Rua Nova – uma das principais do Recife – pela Cambôa do Carmo, rua estreita, acolhedora e uma recordação dos dias em que o bairro de Santo Antônio era, no Recife, uma ilha cheia de cambôas, com a água fazendo sentir sua presença por toda a parte; e não apenas no rio. Na Cambôa está hoje um dos bons restaurantes do Recife, ainda novo mas quase rival do velho Leite que, na esquina da Rua da Concórdia, continúa a ser uma das melhores tradições do Recife. Caminha já para o seu centenário, oferecendo, como outrora, aos turistas a procura de sabores regionais, peixadas à moda de Pernambuco – a célebre “cavala perna-de-moça” que alguns entendidos consideram maravilha no gênero; lagosta fresca; e aos gulosos de dôces – pasteis e bons bocados preparados por um confeiteiro que é mestre da sua especialidade. Já que estamos no assunto, é bom o turista saiba haver neste mesmo bairro um mercado que é outra tradição recifense; e no qual, tempo de fruta, se encontrar, do mesmo modo que no Cais de Santa Rita, pouco acima do Grande Hotel, o famoso abacaxi pernambucano. Outras frutas dignas da atenção do turista que venha ao Recife em pleno verão pernambucano: a manga, o caju, o cajá, a carambola, o abacate, a mangaba, a jaca, o mamão, o jambo. A manga, do mesmo modo que o abacaxi, o mamão, o abacate, póde ser elegantemente saboreada como sobremesa fina. Outras frutas como o cajú e a mangaba, o turista deve preferí-las sob a forma de refrescos. Ou então de sorvetes. E há à Rua da Aurora uma sorveteria que já se tornou famosa pelos seus sorvetes de frutas pernambucanas, embora tenham êsses sorvetes os seus críticos: os que lamentam nêles o excesso de açúcar. Mas sendo ainda o Recife a capital do açúcar, é um excesso que o turista saberá desculpar nos recifenses – mesmo quando brasileiros de origem japonesa. Acrescenta-se que de goiaba se faz em Pernambuco um doce hoje fama mundial. Saiba o turista que o melhor peixe do Recife é a cavala perna-de-moça; o melhor abacaxi é o pico-de-rosa; a melhor manga para uns é a Itamaracá, para outros, a Rosa. É grande a variedade de mangas produzidas pelas mangueiras dos quintais do Recife e dos seus arredores. Mangas e manguitos. São célebres também seus cajús, seus sapotís e suas sapotas. Carambolas, goiabas, jambos, mamões, bananas, araçás, repita-se que são outras das especialidades do arvoredo que ainda cresce no Recife. Do interior o Recife recebe gostosas pinhas, de Caruarú, uvas sertanejas, mangabas de Prazeres. No Mercado de São José encontra-se queijo ou requeijão do sertão; e no Páteo de São Pedro há quem venda carne-de-sol, linguiça, choriço da terra. Gaiamuns há ainda quem se dê ao trabalho de engordá-los no fundo de velhos quintais nos clássicos caritós, onde depois de purgados são cuidadosamente cevados: é o que faz certo morador da Estrada dos Remédios, em cujo “reservado” e encontram hoje gostosas fritadas de gaiamuns, além de sururú e de peixe. Um cronista carioca, Carlos de Laet Neto, elogía muito a lagosta com cebolas e creme de leite que se serve em Bôa Viagem. Mas sem deixar de reconhecer as virtudes da lagosta ensopada com ovos que se faz no Leite; e da muito pernambucanamente servida com leite de côco – especialidade de pitoresco restaurante à Rua da Aurora. Esta aliás, é a mais recifense das ruas do Recife; e a lagosta talvez seja o mais recifense dos quitutes, com excepção do pitú. O célebre pitú do Rio Una, uma vez por outra oferecido pelo Leite aos seus freguêses de paladar mais exigente. Sobremesa muito do Leite é a “cartola”: queijo e banana, com açúcar e canela. É rival, como sobremesa típica dos recifenses, da tapioca molhada, (mandioca, leite de côco, açúcar e canela) que para ser ortodoxa, deve ser servida em verdes e frescas fôlhas de bananeira. Não é, entretanto, sobremesa de restaurante; e sim de residências particulares. Da do casal Antiógenes Chaves, por exemplo, que é o casal recifense que melhor recebe estrangeiros e brasileiros de outros Estados. Dôces feitos por excelente mestre português se encontram hoje numa confeitaria da Rua da Aurora. O turista não deve deixar de experimentar, dentre os sorvetes da terra, o de coração-da-Índia ou graviola. Água de côco há várias barracas perto do Hotel de Boa Viagem, que a vendem, aberto o côco na ocasião, podendo ser o chamado “catarro” ou a denominada “lama” saboreada além da água: é melhor que a água. Há vendedores de côco em algumas esquinas da cidade; e também vendedoras de tapioca, peixe frito, frutas: de ordinário negras ou mulheres de côr que já não se fazem notar pelos seus xales vistosos e pelos seus turbantes à moda bahiana. Vários são também os vendedores de vassouras e espanadores, de caldo de cana, de melado (mel de engenho), de ostras, de camarões, de carangueijos à corda, de verdura, que correm as ruas, despertando a freguesia com seus pregões. E há ruas do Recife – a Estreita e a Larga do Rosário, por exemplo – que parecem ruas do Oriente médio, tantos são os vendedores de bugigangas instalados nelas para a venda de frutas, espelhos, sandálias, alpercatas, camisas de meia, estampas de santos, gaiolas de passarinhos, miudesas. No mercado de São José encontram-se à venda, além dessas miudesas, fumo de rolo, queijo do sertão, rêdes de Timbaúba, quartinhas e potes de barro, os famosos folhetos de “histórias” regionais: aventuras de cangaceiros, proesas de “amarelinhos”, façanhas dos chamados “camões”. Às vêzes aparecem um cantador com sua viola; ou um cego-cantador; ou algum novo Ascenço Ferreira a recitar para os recifenses versos populares da gente do interior. Ascenço em pessôa poderá ser surpreendido – gordo, imenso, chapelão de matuto – em algum bar mais pitoresco da cidade, tomando já tarde da noite, sua cerveja gelada. Não deixe o turista de procurar ver o maestro Nelson Ferreira regendo no Português uma das suas orquestras recifenses. É show dos bons. Nelson e Capiba são os dois mestres da música carnavalesca do Recife. Interessante será também uma visita à Dona Santa: negra velha já de quase cem anos que continua a aparecer nos carnavais do Recife como rainha do melhor dos maracatús da cidade. E feliz do turista que conseguir fazer amizade com um dos filhos do babalorixá, há anos morto, Pai Adão; e conseguir dêle que organize um xangô com um pouco da ortodoxia e da arte que tornara célebres as funções daquêle velho, cujo único rival foi, no Brasil, Pai Martiniano, da Bahia. Ambos sabiam nagô; e haviam estudado na África. Mas ao contrário dos Joãsinhos da Goméa, escondiam-se dos curiosos. São várias as mouras encantadas que o turista pode passar pela Capital de Pernambuco e metrópole regional do Nordeste sem as descobrir. O que não significa que não haja no Recife encantos que não precisam de ser procurados. Mesmo sem guia, o turista descobre os rios: os dois rios recifenses com suas várias pontes. E mesmo sem saber distinguir do Capibaribe o Beberibe – que vem ao recife apenas para encontrar-se com o mar e cumprir assim uma obrigação de todos os rios – o turista não tarda em se sentir numa cidade formada por ilhas e quase-ilhas. Antes do seu encontro com o mar, deixa-se o meio boemio Beberibe enobrecer em rio oficial. Só depois de comtemplado todas as tardes pelo Governador do Estado, da varanda de um palácio à beira-rio, perde sua condição de rio para tornar-se água de oceano. Muda então de sexo à vista de qualquer curioso. O Palácio dos Governadores fica hoje quase no mesmo lugar em que no século XVII o Conde Mauricio de Nassau levantou com algum fausto seu castelo: a cavaleiro dos dois rios. O Capibaribe, porém, é, no Recife, um rio menos oficial que o Beberibe: antes de passar pelo Palácio do Govêrno, atravessa boa parte da cidade, ligando-se amorosamente aos quintais de muitas casas, aos sítios de muitos casarões, ao Hospital Pedro II, à Detenção, a muito sobrado: inclusive os da Rua da Aurora. Deixa-se ver por meninos doentes e por presos que nele põem suas esperanças de liberdade; em suas águas brincam garotos pobres; por elas descem, ao lado de barcaças cheias de tijolos, ioles de adolescentes esportivos. A Rua da Aurora é uma das ruas mais caracterìsticamente recifenses: talvez a mais recifense. É de todas, a mais cortejada pelo Capibaribe. Seu nome é poético. O turista não se esqueça em momento algum de que está numa cidade de poetas. Lembre-se de que alguns dos maiores poetas brasileiros de hoje são do Recife: Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Mauro Mota, João Cabral de Melo, Carlos Pena, Carlos Moreira, Edimir Domingues, o velho Ascenço: o Ascenço Ferreira que, nascido no interior fez-se homem e tornou-se poeta no Recife. Daí nomes de ruas que parecem títulos de poemas: Aurora Sol, Saudade, Soledade, Amizade, Ninfas, Real da Tôrre, Rosário. Encanta-Moça é outro delicioso nome recifense: o do seu velho Aeroporto. Na Rua da Aurora está a Prefeitura. Está a Repartição Central de Polícia. Está o Palácio Joaquim Nabuco: a Assembléia do Estado. Está o Colégio – outrora Ginásio Pernambucano, onde no século XIX fizeram seus estudos secundários vários brasileiros eminentes. Um dêles Epitácio Pessôa, que foi aluno gratuito da instituição – instituição bem recifense no seu modo generosamente materno de vir servindo ao Norte inteiro do Brasil; e não apenas a Pernambuco. Servindo, educando, instruindo. É também o caso da Faculdade de Direito – hoje parte da Universidade do Recife – cujo palácio, inaugurado em 1911, o turista deve visitar, sem deixar de prestar homenagem à memória dos juristas que enobreceram o passado da velha Escola, fundada em Olinda e alguns anos depois transferida para o Recife. Alguns desses sábios – Tobias Barreto, entre outros – estão imortalisados em bustos, espalhados pelo jardim da ilustre academia. Uma estátua glorifica Martins Júnior. Um busto de jovem recorda o martírio de Demócrito de Sousa Filho – estudante de Direito que morreu assassinado na tarde de 3 de Março de 1945 quando, com outros bravos, reavivou com seu sangue e com seu brio uma das tradições mais recifenses: a do amor à liberdade e a do horror aos tiranos. Tradição vinda das revoluções de 1817, de 1824, de 1849. Vinda de mais longe: da expulsão dos holandeses no século XVII. Outras instituições recifenses há longos anos – alguma há mais de século a serviço do Brasil – especialmente do Norte e do Nordeste do Brasil e não apenas de Pernambuco, são: o Teatro Santa Isabel – célebre pelo seu passado como o teatro onde se fizeram aplaudir alguns dos maiores artistas europeus que visitaram o Brasil no século XIX; célebre pelos discursos que aí proferiu na campanha abolicionista o grande brasileiro do Recife que foi Joaquim Nabuco; e notável também como arquitetura: obra do francês Luis Léger Vauthier; a Escola Normal do Estado – onde madrugou, no país, o moderno estudo de Sociologia acompanhado de pesquisa de campo; a Santa Casa; o Hospital Pedro II; o Horto de Dois Irmãos; o Instituto Arqueológico, hoje instalado à Rua do Hospício, com preciso museu histórico que merece a visita do turista; o Hospício da Tamarineira – reformado pioneiramente por Ulysses Pernambucano de Melo; o Hospital Português; o Hospital da Jaqueira; o de Santo Amaro; o Liceu de Artes e Ofícios; o Colégio de São José; o Colégio das Damas Cristãs; a Academia Pernambucana de Letras; o Colégio Salesiano; os dois Colégios Americanos; o Colégio Nóbrega; os Colégios Maristas; a Escola de Engenharia (onde ensina o matemático Luis Freire); o Diário de Pernambuco – fundado em 1825 e o jornal mais antigo em circulação não só no Brasil como na América Latina. Não nos esqueçamos do Cemitério de Santo Amaro do Recife, traçado também por Vauthier, onde se acham sepultados vários brasileiros ilustres – José Bento da Cunha Figueiredo, Joaquim Nabuco, José Mariano, Martins Júnior, Rosa e Silva, Estácio Coimbra, Manuel Borba. Perto do Cemitério de Santo Amaro está o Cemitério dos ingleses. Nele se acha sepultado o General Abreu e Lima. Os ingleses têm também no Recife, desde o começo do século XIX, capela própria, de rito anglicano. Dentre as instituições recifenses – ou situados no Recife – que nos últimos anos vêm se juntando às antigas, como centros de cultura a serviço da Região ou do país inteiro – e não apenas do Estado de Pernambuco – devem ser destacados: a Faculdade de Medicina; a Universidade Rural; três Faculdades de Filosofia; o Museu do Estado – fundado por Estácio Coimbra, quando Governador de Pernambuco; o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais; o Sanatório Recife; o Centro Regional de Pesquisas Educacionais; a Escola de Química; o Instituto de Anti-Bióticos; a Escola de Belas Artes; o Instituto Osório de Almeida; o Instituto de Micologia; o Instituto Agronômico; o Instituto Ageu Magalhães; a Escola Ulysses Pernambucano; o Conservatório; o Museu de Arte Popular; a Escolinha de Arte; a Associação Cristã Feminina; o Teatro de Amadores; a Escola de Enfermagem; o monumental Hospital Barão de Lucena – um dos mais modernos e vastos do País e que representa a capacidade de realização de um homem do Nordeste da mesma fibra de Delmiro Gouveia: José Pessôa de Queiroz. São instituições de interêsse para o turista que deseje se inteirar das atuais atividades culturais do Recife. Ao turista dessa espécie talvez interesse também a informação de reunir hoje a capital de Pernambuco um dos melhores grupos brasileiros de pintores, alguns dos quais com ateliers que podem ser visitados: Fedora e Vicente do Rêgo Monteiro, Manoel Bandeira, Lula Cardoso Ayres, Francisco Brennand, Aloisio Magalhães, Elezier Xavier, Ladjane Bandeira, Tilde Canti, Baltazar da Câmara, Mário Nunes, Ivan Carneiro, Murilo Lagreca, Reinaldo, Abelardo da Hora – êste mais escultor que pintor. Há na Rua Amélia uma casa onde se acha instalado o Gráfico Amador: reduto de jovens artistas e intelectuais que aí se reunem para aventuras experimentais não só em pintura e literatura como em artes gráficas. Um dos frequentadores do Gráfico Amador é o escritor Ariano Suassuna, autor de O Auto da Compadecida: revelação de um talento novo de teatrólogo que atraiu para o Recife a atenção do Brasil inteiro. Outro é o pintor e antigo gerente de banco Artur Goulart. Ainda outro, o contista Gastão de Holanda. De Francisco Brennand não nos esqueçamos que vem sendo no Recife um arrojado e honesto experimentador em pintura em azulejo, em cerâmica, em porcelana: especialidade em que seus triunfos são já notáveis. Dele é um mural lìricamente campestre, que se junta aos mais acentuadamente regionais e folclóricos de Lula Cardoso Ayres, para dar à Estação do Aeroporto do Recife o seu principal atrativo artístico: anima o seu interior de sugestões recifenses de forma e de côr que, infelizmente, faltam ao exterior. De Lula Cardoso Ayres – talvez o maior mestre brasileiro na arte do mural – vêem-se também murais, cujos temas sempre recifenses sem que seu regionalismo degenere em caipirismo, no Cinema São Luiz, no Grande Hotel, no Caxangá Golf Club. Infelizmente, mãos irresponsáveis apagaram outros murais que deveriam atrair hoje a atenção do turista de gôsto que viesse ao Recife; o pintado por Di Cavalcanti para a Brigada Policial do Estado, no Derby; o pintado por Cícero Dias, para a Secretaria da Fazenda; o pintado por Hélio Feijó para o Grande Hotel. De Cícero Dias são vários os particulares – um deles o advogado Antiógens Chaves, no seu palacete da Rua Amélia – que possuem pinturas da fase mais intensamente recifense do grande pintor-poeta: aquela em que sua pintura se especializou em evocar formas e côres regionais – engenhos, sobrados, banhos de rio, iáiás de cabelos soltos, mulatas nuas, famílias de luto – dando-lhes a mesma universalidade que os inglêses nos seus romances e nos seus poemas sabem dar aos assuntos mais intimamente britânicos. Há também quem possua, além de Cíceros, de Aloisios e de Vicentes moderníssimos, paisagens recifenses de Teles Júnior: o mais recifense e o mais clássico dos velhos mestres da pintura de quem se vê um busto no segundo Jardim da Avenida Boa Viagem. Dele várias pinturas podem ser admiradas no Museu do Estado onde também encontrará o turista toda uma boa coleção de gravuras e litografias do Recife antigo: a antiga Coleção Baltar, adquirida para o Estado por Estácio Coimbra, quando governador de Pernambuco. No mesmo Museu se acham antigos móveis caracterìsticamente pernambucanos; imagens de santos; joias das usadas no tempo do Império pelas fidalgas da então opulenta Província. São parte da Coleção Braz Ribeiro, adquirida há anos pelo Estado. Em edifício anexo ao principal – que foi residência de família sinhá, isto é, fifalga, do século XIX, se acha a coleção etnográfica Carlos Estêvão. No Horto de Dois Irmãos há um interessante pequeno museu: o de cerâmica popular organizado pelo colecionador Abelardo Rodrigues em cuja residência se encontra a melhor coleção brasileira de imagens barrocas. De outro Rodrigues – Francisco – é outra valiosa coleção particular organizada por homem do Recife: de fotografias antigas de gente pernambucana. Não deixe o turista de visitar o museu, ainda em começo, mas já muito interessante, do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Sociais, num velho casarão do Caldereiro, notável pela sua arquitetura. É um começo de museu etnolográfico e de história social, especializado em recordar o passado e documentar a formação do Norte agrário do Brasil; e onde se encontram desde banheiras de mármore, usadas pelos nababos antigos da região, para seus banhos senhorís; até ex-votos de gente rústica em tôrno de assuntos humildemente rurais: patas de cavalo, casco de boi, espigas de milho. Ao lado do museu se acha um jardim ecológico, com as principais plantas ligadas à economia, à vida e à mística da região: desde a cana de açúcar à maconha; desde o pau-Brasil à mangueira que, importada da Índia, encontrou em Pernambuco meio quase igual ao nativo. Outro jardim ecológico, êste de caráter acentuadamente didático, é o que, seguindo o exemplo do Instituto Joaquim Nabuco, o Professor Ernesto Silva inaugurou no Colégio Estadual, à rua da Aurora. Se o turista se interessa pela natureza regional, dedique uma manhã ou uma tarde ao Horto ou Parque de Dois Irmãos, onde encontrará muita planta da terra, formando quase uma mata. Também encontrará em lugares que põem o turista a resguardo de qualquer agressão, sem serem entretanto os animais conservados em jaulas ou gaiolas, bichos selvagens da região: cobras, jacarés, onças. E uma variedade de aves: estas, é claro, engaioladas. O que sucede também a alguns dos macacos. A alguns porque outros vivem soltos e livres numa pequena ilha do Horto de que são senhores. Outra excursão às fronteiras ainda agrestes da cidade que o turista poderá fazer numa clara manhã de sol em que se sinta esportivamente atraido para o contacto com a natureza tropical será ao recanto – até há pouco tempo, terra de engenho – em que está sendo levantada a Cidade Universitária: esfôrço de um homem de oitenta anos que se conserva espantosamente jovem de espírito – o Reitor Joaquim Amazonas. Já alguns edifícios estão de pé. Outros, em construção. Breve, todo um conjunto de escolas e laboratórios dará à antiga terra de engenho banguê um aspecto novo e festivo, com centenas de moços e de moças a frequentarem aulas universitárias, sob os encontros de uma paisagem docemente pernambucana. Aliás grande parte da hoje cidade do Recife está levantada em terras outrora de engenhos de moer cana: a cidade foi obrigando os canaviais a se afastarem. Um dos últimos engenhos a resistir como um dom Quixote à Cidade triunfante chamava-se significativamente Poeta; e em suas terras está hoje o Caxangá Golf Club. Alguns urbanistas – e não sómente alguns poetas – lamentam que o mato não tenha oferecido no Recife maior resistência à ocupação dos espaços verdes pelos edifícios urbanos. Faltam hoje à cidade parques ou jardins-parques que, como os de Madrid, dêem ao próprio centro da cidade sombras de árvores verdadeiramente acolhedoras. Êrro antigo difícil de ser corrigido pelos recifenses de hoje. Mesmo assim o turista achará onde refugiar-se de um sol mais forte ou de uma luz mais crua, pedindo ao primeiro chofer que o leve ao Treze de Maio – jardim quase porque onde breve se levantará a cabeça em bronze do poeta recifense Manuel Bandeira, trabalho do escultor Celson Antonio. Outros jardins – alguns organizados por Mestre Burle-Marx, no tempo do sr. Carlos de Lima Cavalcanti, Interventor Federal; vários, pequenos porém úteis, recuperados ou abertos pelo Professor Gonçalves Fernandes, quando Diretor do Bem Estar Público nos dias do Médio Djair Brindeiro, Prefeito do Recife; ainda outros, do tempo de Sérgio Loreto, Governador do Estado – refrescam hoje a cidade. E não nos esqueçamos do traçado pelo mesmo Burle-Marx para o novo Aeroporto do Recife: iniciativa do atual Prefeito, o Engenheiro Pelópitas Silveira, a quem se deve também o ajardinamneto do largo de Dois Irmãos. Dentre os mais velhos restam o da Praça da República – outrora Campo das Princesas – o da praça Maciel Pinheiro – em tôrno de uma bonita fonte – o da Praça Dezessete também enobrecido por uma fonte antiga; o da Praça Artur Oscar; êste no bairro do Recife propriamente dito. Um bairro onde estão os bancos mais antigos, a Delegacia Fiscal e a Western Telegrafh, a Associação Comercial; e por ser o bairro do cais, a Capitania dos Portos, o Moinho Recife, a Administração das Docas, Domina a Administração os vários armazéns onde carregam e descarregam vapores, para os quais o pôrto parece ter se tornado pequeno. Aqui também se acha um Ship-shandler tradicional. Foi por muito tempo do velho Ayres – um inglês do tempo da Rainha Vitória, de enorme bigodes imperiais; continuado pelo filho, o gordo, róseo e amável Jack, anglo-pernambucano que até à morte encarnou no Recife o espírito da “Merrie England”. Também neste bairro, à Rua do Bom Jesus, continúa de portas abertas a mais velha botica do Recife: a Francesa; e refugiado num velho sobrado, o British Town Club, onde o turista guloso de feijoada poderá travar conhecimento, entre goles de bom uisque, com o maior mestre recifense de culinária pesada. É êle um dos sócios mais distintos do Club, embora conhecido pelo apelido pouco cerimonioso de “Cobrinha”. Se o turista conseguir participar de uma feijoada preparada por Mr. “Cobrinha”, poderá considerar-se um turista feliz. Vários são os clubes elegantes no Recife de hoje: o Internacional, que é o mais antigo e gaba-se com inteira razão de ser o mais nobre com uma boa séde na Magdalena, bairro até o comêço do século atual, de muita residência senhorial, das que – o caso também das de Ponte d’Uchôa, do Poço da Panela, do Monteiro, dos Apipucos, de Caxangá (lugares, outrora, alegres, de “passamentos de festas”, com banhos de rio, danças, pastorís, mamulengos) – davam a frente para o Capibaribe; o Iate (à beira do Capibaribe e dono de lanchas nas quais o turista poderá subir e descer o rio, penetrando por um Recife deliciosamente íntimo, que só pode ser visto por quem descer ou subir o rio); o Cabanga; o Náutico; o Sport; o Country Club; o Caxangá Golf; o Português com uma séde bem situada e famoso pelas suas comemorações do São João; os dois da Marinha – Maroim e Mariscos; o do Exército. Pois não se esqueça o turista de que o Recife é base naval importante; base aérea igualmente importante; e séde de uma vasta Região Militar – bases e Regiões por cujo comando têm passado figuras das mais notáveis das Fôrças Armadas da República. Quanto às comemorações de São João pelo Clube Português são apenas um aspecto dessas comemorações na capital de Pernambuco, cujas ruas de subúrbio ainda se enchem de fogueiras na noite em que o santinho-menino é festejado pelos seus devotos recifenses com muitos vivas e muitos fogos. Exatamente como há 20 anos, quando o cronista Braga as conheceu. Entretanto, talvez a grande devoção dos recifenses seja a que dedicam a Santo Antônio: objeto de muito promessa no seu Convento Franciscano à Rua do Imperador. A Padroeira da Cidade é Nossa Senhora do Carmo (Convento dos Carmelitas). A Padroeira do Comércio do Recife é Nossa Senhora da Penha (Convento dos Capuchinhos). Há no Recife sinagoga; há uma Igreja Anglicana já antiga; há lojas maçônicas; há centros espíritas; e em várias igrejas evangélicas Deus é adorado através da Bíblia e de hinos contados numa voz já docemente brasileira: sinal de que o evangelismo vem sendo assimilado pelos seus adeptos recifenses em vez de conservar-se aqui estrangeiriço ou exótico. Aliás, o Recife foi um dos pontos da América onde, ao lado do Catolicismo, madrugou no século XVII o Cristianismo evangélico; e o burgo do continente onde não só principiou o culto israelita como começou a literatura judaica no Novo Mundo, em poema aqui escrito por Aboab da Fonseca. Houve cemitério israelita nos Coelhos. E o autor do primeiro poema brasileiro – a Prosopopéia – escrito em Pernambuco no século XVI parece que era cristão-novo. Quanto aos cultos afro-brasileiros – os chamados xangôs – estão hoje em declínio. O último grande babalorixá da cidade foi Pai Adão, que estudara sua teologia em Lagos, na África e falava o nagô sagrado, aprendido com africanos. Seus continuadores são bem menos ortodoxos. Mais ainda cantam de oitiva bonitos cantos e dançam de memória, bonitas danças das que os negros velhos sabiam os segredos e os significados. Feliz será o turista se, particularmente interessado na história da cidade, conseguir ganhar a simpatia do mais velho historiador recifense: o secretário perpétuo do Instituto Arqueológico. Seu nome é Mário Melo. O Professor Mário Melo. Sua idade: além dos setenta. Mestre Mário contará ao turista que o Recife, ainda aldeia, foi invadida por piratas: por fancêses de volta do Rio de Janeiro e por um inglês chamado Lancaster que saqueou armazéns e obrigou portuguêses – então donos do Brasil – a puxas carroças cheias de caixas de açucar, tendo sido assim os primeiros “burros sem rabo” no País. Catará ao turista o que foi – assunto hoje dominado em todos os seus aspectos por um jovem e já notável Scholar recifense, com estudos diretos nas fontes, isto é, os arquivos holandêses e que é o Professor J. A. Gonçalves de Melo, autor de um livro digno da atenção do turista interessado no passado recifense: Tempo dos Flamengos – o domínio dos holandêses. A “reação pernambucana”. O govêrno liberal do Conde Maurício: um conde esclarecido que trouxe para o Brasil pintores e sábios; e que fez traçar para o burgo o primeiro plano de urbanização que parece ter tido a América: tanto a do Sul como a do Norte. Poderá o turista aprender com os historiadores o que foi, no século XVII, a luta entre os chamados fidalgos de Olinda e os chamados “Mascates”. O que foi no Recife a Revolução de 17, seguida pela de 24. O que foi na capital de Pernambuco, a Revolta Praieira. Poderá conhecer, por intermédio dêles, figuras de patriotas, de heróis, de mártires: o Padre João Ribeiro, Frei Caneca, Nunes Machado. Poderá inteirar-se do que foi no Recife o movimento de 1911: a campanha do “Salvai, salvai, querido general” ao som da Vassourinha. O já referido Mário Melo é muito homem, para, tempo de Carnaval, passar da evocação de patriotas e de revoluções recifenses à iniciação prática do turista nas expressões mais folclóricas do carnaval popular – o carnaval de rua – da cidade: o “frevo”, o Maracatú de Dona Santa, os Caboclinhos, o Clube das Pás, o Lenhadores o Vassourinhas. O que fará obrigando o turista a, antes de qualquer iniciação em passos de dança, alegrar-se com uns goles de bate-bate: um recifense bate-bate feito com cachaça velha e maracujá. Destaque-se do Carnaval do Recife que vem sendo há anos animado pela Prefeitura, que tem atualmente no seu diretor de Documentação e Cultura um fiel defensor dos valores recifenses: o Sr. Césio Rigueira Costa. Com outros intérpretes do Recife poderá o turista aprender segredos recifenses que não lhe saberá contar Mestre Melo ou Mestre Rigueira. Mestre Aníbal Fernandes, por exemplo, que sendo um erudito é também um artista. Êste vem sendo há uns bons quarenta anos o cronista por exelência do Recife: da vida, das transformações, dos progressos, disso que os pedantes chamam a “evolução”, da cidade. Ninguém mais amoroso do Recife – onde aliás não nasceu: nasceu em Nazareth da Mata – do que Mestre Fernandes. Ninguém mais inteligentemente preocupado com os problemas da cidade. Graças a êle, tem se evitado ou se atenuado muitas descaracterização da capital pernambucana. Muito ultraje às igrejas. Infelizmente, não conseguiu evitar a destruição da Igreja do Corpo Santo e dos Arcos: era simples rapazelho quando aconteceu êsse horror. Mas desde então tem pelejado na defesa das melhores tradições e dos mais puros interêsses recifenses com uma bravura que o recomenda à gratidão da cidade. Gratidão que nem sempre tarda. O poeta recifense, felizmente ainda vivo, Manuel Bandeira, vai breve ter o seu busto num recanto do Jardim Treze de Maio: bem próximo do novo edifício do Instituto de Educação. (êsse edifício é hoje um dos encantos do Recife e se deve ao esfôrço conjugado de dois educadores notáveis: Anísio Teixeira e Aderbal Jurema. Vem recebendo elogios de estrangeiros ilustres como Mr. Aldous Huxley e o Professor Herbert Frankel, da Universidade de Oxford). Nem sempre porém aquela gratidão se tem feito sentir. O Recife deveria ter já erguido uma estátua de Maurício de Nassau – conde alemão do século XVII que tanto soube amá-la e serví-la. Outra, de Vauthier: engenho francês que na primeira metade do século XIX dedicou-se por algum tempo de corpo e alma à urbanização do Recife. Ainda outra, do primeiro Mamede: o construtor do Hospital Pedro II, da Detenção, do Ginásio. Bustos de Frei Vital, Barbosa Lima, o Velho, Oliveira Lima, Nunes Machado, Otávio de Freitas, Alfredo de Carvalho, Pereira da Costa, Artur Orlando, Ulysses Pernambucano, Saturnino de Brito. Saturnino foi o sanitarista que dotou o Recife do seu moderno e por algum tempo exemplar serviço de água e de esgôto. Há estátuas no Recife levantadas pelos recifenses a alguns dos seus benfeitores. Já nos referimos a algumas. Devem ser lembradas também a do Conde da Boa Vista, perto do Palácio do Govêrno; a de Joaquim Nabuco – talvez o maior recifense de todos os tempos: grande pelo talento, pelo caráter e pelo próprio físico de homem virilmente belo – na praça que tem o seu nome. Bustos, além do de Teles Júnior, existem os de Oswaldo Cruz e Amaury de Medeiros (no pequeno jardim em frente ao Departamento de Saúde e Assistência), o de Farias Neves (perto da Escola Normal), o de José Mariano, no Poço da Panela perto do casarão onde morou o famoso abolicionista e onde brincou menino o futuro “poeta das cigarras”, Olegário Mariano. Há no Arraial um monumento que recorda a resistência brasileira aos holandêses em terras hoje do Recife. Um trecho dessas terras será breve parque municipal e talvez playground para crianças pobres, graças à feliz idéia do Prefeito Pelópidas Silveira de desapropriar o velho Sítio da Trindade. Note-se a êste propósito que o Recife foi pioneiro no Brasil em matéria de playground: antecipou-se neste particular a São Paulo. A iniciativa foi de um bom e hoje esquecido prefeito, Costa Maia, por sugestão de um Jornal da época (1928): A Província. O Recife – por muito tempo vila – só é cidade desde 1823 e capital de Pernambuco, apenas desde 1827. De Olinda, a antiga capital, o pernambucano de hoje se sente uma espécie de neto, quase não sabendo separar a cidade-avó da materna Recife. E estará incompleto todo aquele brasileiro de outro Estado ou o estrangeiro de qualquer procedência que visite o Recife, deixando de ir ver Olinda: há mais de século, doce burgo de igrejas históricas e velhos conventos, cheios de recordações da época colonial; e perto da qual, precisamente em terras onde no século XVII se ergueu o Engenho de Jerônimo de Albuquerque, vem se desenvolvendo a moderníssima indústria da fosforita. Contrasta Olinda com o Recife por ser uma cidade de morros e de praias, enquanto o Recife, tendo também lindas praias sombreadas, como as de Olinda, por coqueiros um tanto românticos, é uma planície em que a água doce está sempre a fazer sentir sua presença de várias e surpreendentes maneiras: em rios, em riachos, em canais. Daí ser conhecida por “Veneza Americana”. Morros, só há no Recife pequenos e despretenciosos. Entre êles, o de Nossa Senhora da Conceição – cuja festa, a 8 de dezembro, atrai muitos devotos – e o de Dois Irmãos. Num dos altos de Dois Irmãos, o dos Apipucos, está há meio século a Casa Provincial dos Irmãos Maristas. É um alto de onde se vê grande parte da cidade; e se surpreende sua transformação de burgo até há pouco um tanto colonial no seu aspecto num conjunto de arranha-céus modernos, embora nem sempre caracterizados pela elegância das formas. São arranha-céus nos quais vivem ou trabalham hoje não poucos dos quase 800.000 habitantes do Recife. É pena que seus arquitetos não se venham inspirado – como faria um Lúcio Costa e como vai fazer Henrique Mindlin, encarregado de levantar a nova séde de um banco já tradicional da cidade – nos velhos sobrados, altos e esguios, quase sempre revestidos de azulejos e de feito evidentemente norte-europeu, que outrora deram a à atual capital de Pernambuco aquela fisionomia “única” entre as cidades do Brasil, notada pelo geógrafo alemão Brandt: singularidade para a qual pensam alguns estudiosos do assunto ter contribuido a presença holandêsa em Pernambuco. Eduardo Prado – o brasileiro mais viajado do seu tempo – foi do que logo se apercebeu no Recife: de alguma coisa de não – ibérico que os holandêses teriam deixado na cidade. O que não significa que tivessem afastado o Recife, em qualquer ponto essencial, da tradição ibérica e Católica a que o Brasil inteiro pertence não exclusivamente, mas pelo que há de decisivo em sua cultura ou em sua civilização, enriquecida cada dia mais pelas contribuições de povos e de civilizações diversas. Inclusive – o próprio Recife que o diga – pela arte dos Japonêses: pela sua arte de horticultores. A êles se deve a presença, nos mercados do Recife, de um novo tipo de melão pequeno e doce, que é uma delícia de fruta refrescante: ideal para ser saboreada no trópico. O Recife é cidade cosmopolita. Está sempre a receber influências de várias partes do mundo: do Oriente, da Europa, dos Estados Unidos. Foi burgo holandês. Chegou a ser uma das cidades mais afrancesadas do Brasil. Também uma das mais anglicisadas. Foi com Tobias Barreto um centro intenso de germanismo: germanismo na jurisprudência, na filosofia, nas letras. Durante a 2ª Grande Guerra foi Base Americana. Há no Recife uma Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos. Uma Associação de Cultura Franco-Brasileira. Uma Sociedade de Cultura Inglesa. Um Instituto de Cultura Hispânica. Uma Associação Cristã Feminina. Outra de girl-scouts: Bandeirantes. Há um Clube Alemão. Um Clube Israelita. Um Clube Sírio-Libanês. Há consulados, com consules de carreira, da Argentina, dos Estados Unidos, da França, da Itália, do Uruguai. Vice-Consul do Reino Unido. Representante de várias outras nações antigas. Há no Recife Western Telegraph e Italcable. Várias estações de rádio. Vários grupos de amadores de teatro que representam peças de autores estrangeiros, além de dramas ou comédias nacionais e regionais – destas se destacando as de Cavalcanti Borges. Há uma Sociedade de Cultura Musical que uma vez por outra traz ao Teatro Santa Isabel um pianista ou um violinista estrangeiro de renome. Bôa música de igreja – canto gregoriano, canto polifônico, canto sacro popular. Há um Jockey Club, com boas corridas aos domingos. Vários clubes de foot-ball. Há clubes onde se joga tennis, volley, golf e outros jogos elegantes: o Country, o Caxangá Golf, o Sport. Mas quem quizer praticar o seu próprio sport, pode pescar pachorrentamente à beira mar. Há quem à noite goste de sair de tocha pelos arrecifes à procura de lagosta. Nos arrecifes também se encontram povos, dos quais se preparam quitutes que rivalizam com os ensopados de lagosta. Para além dos arrecifes pode-se fazer pesca submarina: especialidade, nos domingos e dias santos, de um grupo de recifenses ilustres, um dêles, admirável mestre brasileiro de cirurgia, conhecido e respeitado na Europa. Outro, conhecido psiquiatra, tem barco a vela. Ilustre cientista do Recife e aqui residente, com renome no estrangeiro, é o químico que dirige o Instituto de Anti-Biótiocos; este é dextro no box. Ainda outro, o diretor do Instituto Osório de Almeida. Mas voltemos aos esportes, para destacar que um dos mais agradáveis nas águas do mar do Recife é jangada-sailing, isto é, sair o turista de jangada pelas águas além dos arrecifes – é claro que sob os cuidados de um jangadeiro idôneo. Foi o que fez John Dos Passos quando esteve no Recife de onde, ao sair, escreveu a um amigo recifense que deixava esta parte do Brasil encantado com as jangadas e cheio de admiração pela perícia dos jangadeiros. Também pela arte popular de cerâmica e da madeira talhada que admirava nas velas igrejas. Cidade quase-ilha ou quase-arquipélago, levantada entre a água do mar e a mata tropical, compreende-se que o Recife se faça notar por êstes valores: águas, mata, arte de talha, arte de cerâmica, pontes, sobrados altos, jangadas, culinária em que dominam o peixe, a lagosta, o camarão, frutas, importações da Europa, do Oriente, dos Estados Unidos. O pôrto do Recife, sendo um dos mais modernos, continua, no seu aspecto comercial e humano, um dos mais românticos do Brasil. Nele estão sempre a descarregar e a carregar navios dos quais se desprendem os mais vários odôres: odôres de Oriente, da África, da Europa, da América do Norte, da Amazônia. Odôres de madeiras importados do Pará. De tratores e de máquinas “made in USA”. De instrumentos de ótica importados da Alemanha. E no Japão e ainda com o cheiro de graxa das fábricas maternas. De bicarbonato de amônio vindo da Polônia. De goma loca, vinda da Holanda. De arroz, feijão e vinho do Rio Grande do Sul. De bacalhau chegado da América do Norte (ao qual se vem juntando ultimamente o peixe sadio e barato que os barcos japonêses de pesca vêm fornecendo ao recifense médio). De azeite espanhol. De castanhas portuguêsas. De cebola do Rio de Janeiro. Também de açúcar pernambucano a caminho da Inglaterra. De abacaxí, para a Argentina. De óleo de mamona e lagosta para os Estados Unidos. Muitos dos lobos do mar estrangeiros desembarcam no Recife sôfregos pelas frutas e alguns pelas mulheres da terra; vários por fumo preto; um ou outro, pela maconha, que, sendo proibida, é adquirida pelos marítimos a preços altos a vendedores misteriosos. Marinheiros ruivos e marujos japonêses misturam-se aos nacionais no cais do Recife onde, entretanto, poucos são os vapores grandes que atracam. É um pôrto que necessita de dragagem para que nêle voltem a tocar os transatlânticos de grande calado. Um pôrto digno das atenções do Govêrno Federal. O pôrto do Nordeste. Outro ponto ao mesmo tempo moderno e romântico do Recife é o Aeroporto de Guararapes. O edifício é novo. Murais de Lula Cardoso Ayres e de Francisco Brennand já se disse que dão ao interior dessa estação um encanto especial: levam ao estrangeiro que chega de paises frios a primeira sensação artística do trópico e das suas côres de mulheres, das suas formas de animais e de frutas. Aqui carregam e descarregam passageiros e cargas, aviões internacionais e intranacionais. O Recife se comunica diretamente por aviões com várias cidades da Europa e da América; com Dakar; e com as principais cidades do Brasil. Estão sempre a pousar no Recife aviões internacionais como os vinhos de Buenos Aires para Londres (Panair), de Stokolmo para Santiago (S.A S.), de Zurich para Buenos Aires (Swissair). E vice-versa. Há também uma Estação Ferroviária – a Central, da Rêde do Nordeste – de onde partem trens para vários pontos do Nordeste. E outra, Rodoviária, perto do Grande Hotel, centro de todo um sistema de comunicação da capital com o interior do Estado. Há também aviões capazes de levar ràpidamente o turista a Garanhuns – cidade a quase mil metros acima do nível do mar, fresca e durante algum tempo, até fria, com um moderno hotel em construção num dos seus altos – e à Paulo Afonso: a famosa cachoeira que alguns consideram mais bela que a Niágara ou a Victória ou Iguassú. Das águas do Recife é quase um salto a viagem por avião às águas de Paulo Afonso. Pontes são várias as que se levantam sôbre as águas do Capibaribe, também dando ao Recife uma fisionomia única entre as cidades brasileiras. Algumas são antigas: do tempo do Império. Outras foram levantadas ou renovadas há poucos anos: uma delas pelo atual Senador Novais Filho, quando Governador da cidade. Não nos esqueçamos de que uma ponte do Recife é evocada em versos célebre de Augusto dos Anjos que caminhando pela “Ponte Buarque de Macêdo” viu sua “sombra magra” em direção à “Casa do Agra”. O Agra é uma instituição recifense: velha casa funerária que foi também, por muito tempo, famosa pelos seus coches com lanternas de prata, seus cocheiros de cartola preta e de luvas brancas, seus carros festivos para casamentos e batizados elegantes. A propósito de pontes e de Capibaribe, deve ser destacado o fato de continuar o esporte do remo uma das mais vivas tradições recifenses, embora as regatas já não tenham o esplendor de outrora. Não há recifense autêntico que não acompanhe a atual Federação Aquática Pernambucana em seu pavor à idéia dita urbanística, de ser aterrada a bacia do Capibaribe que serve de raia às regatas recifenses, para em seu lugar ser construida uma praça de estacionamento de automóveis. A verdade é que não se compreende o Recife desquitado da água que lhe vem distinguindo a fisionomia: a água do Capibaribe; a água do Beberibe; a água do mar; a água do açude dos Apipucos (que uns insensatos já pretenderam fazer secar, tendo as lavadeiras e os moradores do arrabalde se levantado em massa contra a infeliz idéia); a água do Riacho da Prata, onde é tradição estar sepultada a prata que foi de Branca Dias, rica judia da época colonial que a Inquisição teria perseguido, obrigando-a a esconder sua fortuna naquele riacho, desde então malassombrado, dos Apipucos. Infelizmente as águas de rio são hoje no Recife – célebre outrora pelos seus banhos de rio – água sujas. O banho bom, higiênico, lúdico é, no Recife atual, o de mar. Sobretudo na Bôa Viagem. Pelos recifes ou arrecifes de Bôa Viagem é agradável passeiar o menino, o moço e até o velho quando o mar está baixo; e os peixinhos, uns azuis, outros amarelos listrados de preto, se deixam ver em toda a sua glória de côres, nadando nas poças esverdeadas que o sol aquece. O sol aquece, tempo de verão e de mar baixo, a água das várias bacias que em Bôa Viagem são uma verdadeira sucessão de piscinas, entre os arrecifes e a praia. Tem-se a idéia de que dentro dessas piscinas, alguém prepara a água de banho: uma misteriosa mucama que grodúa a temperatura do mar – o mar assim condicionado em piscinas – para regalo dos muitos ioiôs e das muitas iaiás que não encontram aqui o frio das águas européias ou mesmo das de Santos e de Copacabana; e sim uma água ao mesmo tempo verde e morna. Um banho em Bôa Viagem é um dos maiores regalos que o Recife oferece a adventícios tanto quando a nativos. Uma das experiências mais recifenses que um adventício, pode ter no Recife: um mar de água morna; um sol que em pouco tempo amorena o corpo do europeu ou do brasileiro do Sul; vento fresco; recifes; sargaço. Um cheiro bom de sargaço fresco recebe às vezes turistas. Há no banho nessas piscinas, nos dias de sol forte e vento macio, quando o mar começa a subir, mais de uma temperatura: à água quente da beira da praia se misturam deliciosamente outras águas mornas e até frias. A sensação é então a de um banho mágico, encantado. Já não é um simples banho preparado por mucama misteriosa para seu ioiô mas por moura de história fantástica para o seu predileto; e esse predileto é todo indivíduo que entre no mar naquelas piscinas. É o pobre, é o rico, é o nativo, é o turista. Ninguém dá cafuné no turista, é certo; mas há por vezes uma brisa volutuosa que sopra do mar sôbre os cabelos do indivíduo mais indiferente a agrados, acariciando-o como se fôsse mulher festejando o namorado. Além dos hoteis situados, como o Grande Hotel e o Guararapes, no centro da cidade, tem o Recife um hotel e algumas pensões em Bôa Viagem, preferidos pelos que no trópico procuram estar sempre à beira-mar, gozando de camisa aberta no peito os ventos marítimos, regalando-se de banhos salgados o até passeando de jangada. Foi o que fez, como já se recordou, o escritor John Dos Passas na sua passagem pelo Recife: instalou-se em Bôa Viagem. Fartou-se de mar pernambucano; passeou de jangada. Dos Passos, entretanto, não deixou de ir à Várzea dos Brennand cuja cerâmica admirou; nem aos Apipucos. Aí os recebeu o casal Salgado-Sousa com uma ceia a que não faltou, depois de peixe à melhor moda pernambucana, uma variedade de doces segundo velhas receitas da região. Do verde das campinas dos Apipucos observou outro visitante ilustre do Recife – Aldous Huxley – que lhe recordava o das campinas de certos condados inglêses. Há quem prefira o clima do Recife ao do Rio e ao da própria Bahia: o caso do Professor Mário Chicó, da Universidade de Lisboa. Destaque-se do clima do Recife que tem os seus caprichos: e pode mostrar-se tão vário a ponto de parecer dois ou três em vez de um só. Nas casas bem situadas – as que olham para o nascente – não há, em tempo algum do ano, o problema do calor excessivo; e muitos são, para essas casas, os dias frescos e as noites tão gostosamente tocadas de um leve arremedo do frio que alguém já disse delas que são noites – e madrugadas – que parecem poder ser saboreadas pelo próprio paladar do homem: saboreados como se o ar tivesse alguma coisa de sorvete e não apenas de jasmim. É o caso também das ruas situadas para o nascente e sombreadas por árvores ramalhudas: das que se compenetram da responsabilidade de proteger os homens contra os excessos de luz e sobretudo de sol. O curiosos é que algumas das casas mais bem situadas do Recife são hoje aqueles mucambos que, dos lugares baixos, e, ùltimamente, aterrados, vêm se transferindo para os altos e secos onde chegam a ser, enquanto sua palha não envelhece e seu chão não se degrada, residências ideais para o trópico. Calcula-se em 80.000 o número de mucambos que hoje se espalham pelo Recife: alguns pela lama e pelos mangues. É grande a população miserável e até doente que o Recife – com seus hospitais e a fama dos seus salários altos – atrai do Nordeste inteiro. O recifense, desajudado e só, faz de pai e de mãe para numerosos brasileiros do interior de vasta região: gente andeja que, segundo alguns estudiosos do assunto, deveria ser amparada, em seu infortúnio, pela União e não por uma simples capital de Estado. Azulejos antigos em casas de residências já são poucos, hoje, no Recife. O que é pena, pois os externos refrescam as ruas do mesmo modo que os internos refrescam o interior das casas. São ainda várias as casas da Rua Barão de São Borja revestidas de azulejos: daí merecer essa rua uma visita, mesmo rápida, do turista. E lindos são os velhos azulejos de residências antigas de negociantes ou fidalgos recifenses, como aquela em que está há anos instalado o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Azulejos religiosos – cenas da história Sagrada – se encontram nos Conventos dos Franciscanos e dos Carmelitas. No dos Franciscanos foram há pouco descobertos no claustro uns frisos de azulejos antigos que parecem holandêses e do século XVII. Na Capelinha da Jaqueira, há bonitos azulejos. É talvez a Capelinha mais romântica do Recife. Históricas, há também a de nossa Senhora das Fronteiras (Estância) e a dos Apipucos. Também a Igreja do Rosário dos Pretos, à rua Estreita do Rosário, merece uma visita. Do Recife não se esqueça o turista que não é só igreja velha, nem azulejos antigos, nem praias elegantes, nem quitutes de peixe, nem fábricas disto ou daquilo: moderno centro universitários, tem velhas tradições acadêmicas. Em sua Escola de Direito (onde hoje ensinam Pinto Ferreira, Luís Delgado, Murilo Guimarães, Torquato Castro, Soriano, Vilanova, Guedes) estudaram muitos dos brasileiros que se tornaram grandes do Império. Estudou Tobias Barreto. Castro Alves. Estudou Sylvio Romero. Estudaram José Nabuco e Ruy Barbosa. Estudaram, além de Rosa e Silva, Epitácio, Nilo Peçanha, vários grandes da República – de Nilo devendo-se notar ser tradição que, quando estudante, raramente pagava aos alfaiates da cidade os elegantes fraques: os fraques que ostentavam triunfalmente ao descer da sua república para as ruas do centro. Mas, como o Recife vem tendo bons alfaiates – hoje famosos pelo primor com que trabalham e costuram fatos de linho, “tropical” e brim branco – é de presumir que êles venham se compensando de dívidas de estudantes, fazendo-se pagar razoàvelmente bem pem pelos advogados, médicos, comerciantes e industriais da terra: vários dêles, homens que, nos seus fatos de linho branco ou e “tropical”, feitos no Recife, têm se apresentado em várias partes do mundo sem fazerem vergonha ao Brasil: o caso de Estácio Coimbra. Também o do Professor Odilon Nestor.
Em tempos menos remotos, estudaram no Recife Augusto dos Anjos, Aníbal Freire, Gilberto Amado, José Américo de Almeida, Assis Chateaubriand, José Augusto, Pontes de Miranda, José Lins do Rêgo, Raul Bopp. Toda uma constelação de brasileiros ilustres devem ao Recife sua formação |
Fonte: FREYRE, Gilberto. Pequeno guia da cidade do Recife. Recife:s.n., 1959. |