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O profeta da xilogravura
Publicado em 10.01.2006 Por FLORA NOBERTO 

Foto: NordesteWeb

José Francisco Borges, 70 anos, é um grande contador de histórias. Através das xilogravuras e dos versos de cordel, J. Borges já narrou muitos casos para gente de todo o mundo. Depois de ter sido considerado Patrimônio Vivo de Pernambuco, ao lado de mais 11 mestres da cultura popular, logo no início deste ano, Borges conversou com a reportagem do Jornal do Commercio. Lembrou da sua participação no lançamento da lei Patrimônio Vivo, em 2000, que só virou realidade depois de seis anos, e revelou seu descontentamento com a proibição de vendas na sua exposição no Ano do Brasil na França. O mestre ainda contou histórias recentes sobre “enroladas” propostas de trabalho que recebe de empresas e nem sempre dão retorno. E relembrou com bom humor as velhas histórias de artimanhas para vender cordéis nas feiras pelo interior. JORNAL DO COMMERCIO – Como o senhor recebeu a notícia de que era Patrimônio Vivo? J. BORGES – Recebi a notícia de uma pessoa daqui (de Bezerros) que telefonou. Nem me lembro quem foi. Despois aquele menino, Zé Carlos Vianna, da Fundarpe, me ligou dizendo parabéns. Ele sabia que eu não acreditaria, porque isso vinha tramitando desde 2000. Eu dizia: “Só acredito no dia que sair para alguém.” Já não fazia questão que saísse mais para mim. Isso foi um projeto do governo e me fizeram de palhaço. No dia da assinatura da lei, me levaram para discursar no palácio. O projeto ficou engavetado e agora saiu. Então Zé Carlos disse: “Saiu e você foi o sorteado”. Eu disse: “Tá bom, vocês não fizeram mais do que a obrigação de vocês (risos). Eu mereço isso e todos nós que fomos escolhidos merecemos. Fiquei mais feliz pelos outros que são mais carentes do que eu. JC – Como a bolsa vitalícia de R$ 750 vai contribuir? JB – O dinheiro vai ajudar na compra de material: tinta, papel, madeira, que consome 50% do meu faturamento. Para mim, esse dinheiro vai me servir nessa parte, porque a bolacha nós arranja (sic) sem essa bolsa. O material é que pesa. Vai ser como um subsídio. Eu quero trabalhar e descobrir as coisas. Porque esse Nordeste tem muita coisa boa para mostrar pro povo de fora. JC – A lei do Patrimônio Vivo prevê que os mestres repassem seus conhecimentos. Como o senhor fará isso? JB – Vai ter alguma reunião sobre isso. Eu só não me submeto às condições se eles pedirem que eu vá para Petrolina, para Garanhuns, para o Recife… Antes disso (de ser reconhecido como Patrimônio Vivo), já venho servindo a muita gente, dando palestras e ensinando como é. Eu atendo ônibus e mais ônibus de alunos durante o ano todo. Toda vida eu fiz isso. Aqui dentro presto um serviço de acordo com o que me mandarem. Agora, se for para dar aula, eu vou opinar pra que eles não coloquem muita gente. Porque, no meu caso, não é tapiar não. É que se eu ensinar a dez, sai uns cinco artistas. JC – Você recebe muitas propostas de ilustração. Teve alguma que não aceitou? JB – Hoje, tem essas empresas de design. Todo esse povo é tipo piolho. Só sabe se fazer na cabeça dos outros. Então, quando eles sabem que tem uma cabeça gorda, cheia de coisa, eles aporrinham demais. Colocam uma moça com uma fala bonitinha para ligar para mim. Falam que querem o meu trabalho e vão fazer uma divulgação. Eu digo que não vivo de divulgação, que se eu levar divulgação na padaria não levo nenhum punhado de farinha velha. Não sou ignorante e então digo: “Quando vocês se reuniram para fazer esse projeto vocês colorem até o preço do papel higiênico. Então, como vocês só querem o meu trabalho de graça? Tem muita gente que faz coisa muito boa, igualmente a mim, e vocês não solicitam, porque não gostam e nem conhecem arte deles. Querem usar meu nome, que é resultado de 50 anos de luta. Se meu nome vale alguma coisa, eu digo que paguem”. Ano passado, trabalhei para várias firmas que me pediram ilustrações. Até hoje, em muitas das firmas, não me deram resposta sobre os trabalhos que pediram. Agora, vou trabalhar de uma maneira para que as pessoas se comprometam a pagar, nem que seja na Justiça. JC – Você gosta de fazer trabalhos sob encomenda? JB – Eu não gosto não, mas infelizmente é do que eu vivo. Como aqui as vendas são muito poucas, a gente tem que completar a despesa, fazendo por encomenda. Porque também tem umas encomendas que dão muito bem. Mas é preciso ter paciência para receber o dinheiro, porque é muita burocracia. Até já estou acostumado. Só não gosto de fazer e o cara dizer que não gosta, que não aprovou ou não dar satisfação. JC – Qual a memória que o senhor guarda do tempo em que vendia folhetos na rua? JB – No Recife, eu vendia de grosso no Mercado de São José pro pessoal distribuir. Vendi cordel durante 20 anos (1955-1975), mas só nas feiras do interior. Uma vez, eu e um amigo fomos ao Recife e acabamos em Jaboatão. Eu tinha um alto-falante e gostava de ler profecias, previsão de tempo, histórias de seca, fome e guerra. Mas lá era uma cidade mais desenvolvida, eu fiquei com medo de ler aquelas coisas. Mas quanto maior for o lugar, mais tem gente besta que acredita! Eu fiz as velhas se ajoelharem no calçamento quente, os homens tirarem o chapéu da cabeça. E eu: “Peça Deus felicidade, que esse ano vai ser bom, mas para o ano tem a previsão de três dias de escuro, fome, peste, guerra… Só Deus proteje. Tome leve o livrinho. E o povo: ‘Me dê, me dê…’” (risos). Eita feira boa da praga! JC – Como foi a experiência no Ano do Brasil na França? JB – Sempre fico alegre quando vou para os Estados Unidos, porque lá, eu sou sucesso. Na Europa, o povo é muito fechado. Quando me chamaram, eu disse “para França eu não vou, porque da outra vez não me trataram bem. Passei 12 dias lá, me deram um mói (sic) de dinheiro e não me deram intérprete, nem me ensinaram nada. Tive que me virar 12 dias sozinho. E o acolhimento vale mais do que o dinheiro. Mas disseram que o Ano do Brasil na França ia ser diferente. Fui recebido por brasileiros que me deram uma grande assistência. Teve uma feira e o estande do Brasil num lado que não passava ninguém. Eu fiquei mordido de raiva! Agora, a exposição foi muito bem montada, muito bonita com um espaço monstruoso. Mas terminei sendo proibido de vender, porque ali é um país miserável de ruim! Memorial J. Borges – Fone: (81) 3728-3673 ou 3728-0364.

fonte: jc online

Expoente do cordel

J. Borges é um expoente do cordel, literatura popular brasileira que existe há cem anos e que aborda temas do ideário nordestino. É chamada de cordel porque os textos, impressos em brochuras de papel jornal, inicialmente eram vendidos em feiras, onde ficavam pendurados nos varais.

Carnaval de Rua, Princesa Encantada, Amor nos Coqueiros, O Psicanalista e até mesmo a ilustração de seu cordel mais conhecido e vendido, A Chegada da Prostituta no Céu, estão em Basiléia. Borges tem 64 anos e só começou a fazer xilogravura para ilustrar seus textos. A primeira delas foi a igreja de sua cidade natal, Bezerros, que ilustrou o cordel O Verdadeiro Aviso de Frei Damião sobre os Castigos que Vêm. Da poesia à xilogravura Nunca mais parou. Cordelistas encomendavam matrizes e nos anos 70 passou a entalhar trabalhos maiores, independentemente de cordéis. Logo foi descoberto por colecionadores e marchands, tornando-se uma referência internacional. Outra curiosidade é que essa atração dos europeus pelo cordel tem explicação no passado. De acordo com especialistas, o cordel teria um pé na Europa, especialmente na “littérature de colportage”, desenvolvida na Idade Média até o século XVI na França, Espanha, Portugal e Holanda. “Uma exposição como essa em Basiléia mostra a força e a vivacidade do cordel”, disse o jornalista suíço Peter Wehrli, autor de livros ilustrados por J.Borges. O cordel não vai morrer Em suas andanças pelo nordeste brasileiro, que visita desde 1973, anotou frases que foram publicadas em Catálogo de Tudo e em O Novo Catálogo Brasileiro. De acordo com Wehrli, o cordel perdeu a sua função inicial que era a de informar, atividade que hoje dos meios de comunicação desempenham. “Tem se modificado, como qualquer forma de arte, mas continua com a capacidade de refletir a alma, a fantasia e o espírito popular sertanejo”, diz. Na opinião dele, o cordel vai ser reformulado e já há uma nova geração, capaz de manter a literatura popular nordestina viva. Ele cita o grupo cearense de Klévisson Viana com um dos exemplos. “Tenho certeza que essa geração vai modificar o cordel e levá-lo cada vez mais para a Internet”, diz. Enquanto isso não acontece, os livrinhos continuam encantando em seu formato original: J.Borges ensinará várias pessoas a ilustrar um folheto esta semana em Marselha, na França, onde participa de outra exposição “O universo da literatura de cordel”, mostra que faz parte das comemorações do Ano do Brasil na França

fonte: www.swissinfo.org

Memória artesanal

O artista pernambucano J. Borges lançará livro de contos e memórias em forma de cordel e prepara-se para expor nos EUA

Mestre da xilogravura e tradutor do realismo fantástico nordestino, o pernambucano J. Borges, de 66 anos, prepara- se para lançar no próximo mês um livro artesanal, totalmente confeccionado por ele.Em Memórias e Contos de J. Borges, 300 páginas e 187 ilustrações, o artista vai contar fatos da sua vida em versos de cordel. Ele dispensou ajuda de “pessoas cultas” porque prefere a presença de erros gramaticais num autêntico retrato seu e de suas lembranças. Reconhecido dentro e fora do País e apontado pelo escritor Ariano Suassuna como o maior xilogravurista popular brasileiro, ele foi recentemente alvo de reportagem no jornal The New York Times. Já expôs e fez oficinas nos Estados Unidos e vários países da Europa. Foi o único artista brasileiro a ilustrar o calendário 2002 da Organização das Nações Unidas (ONU). Ilustrou o livro Palavras Andantes, do uruguaio Eduardo Galeano, e está com nova viagem marcada para os Estados Unidos, em setembro, a convite de museus de Nova Iorque, Pensilvânia, Colorado e Texas. Pessoa encantadora, ele nunca deixou de ser o J. Borges, menino pobre nascido no sítio Piroca, em Bezerros, no agreste, a 100 quilômetros do Recife. Mantém o jeito puro e os valores de homem do interior e atende a um correspondente estrangeiro com a mesma atenção com que recebe um repórter de uma emissora de rádio local. “Para mim, é tudo igual”. Na era da tecnologia, J. Borges é amante e ferrenho defensor da tradição. Imprime seus cordéis em uma máquina tipográfica do fim do século 19, “que não tem mais onde remendar”, e as xilogravuras – de tamanho até 34 cm x 56 cm – são impressas manualmente em uma peça rudimentar de madeira, feita por ele. É com esse equipamento que ele está fazendo o seu livro, que começa dizendo: “Nasci no tempo em que telefone era o grito e remédio era folha de mato.” Serão mil exemplares e certamente não chegarão às livrarias. Folclore J. Borges só freqüentou a escola durante dez meses, quando tinha 12 anos. Desde os 8, ele ajudava o pai na agricultura. O tempo exíguo de escola foi suficiente para lhe dar as noções básicas da escrita, da leitura e da matemática. O resto foi por sua conta. “Com o pouco que aprendi, saí regando a leitura, que tudo é como planta. ”Com pouco mais de 20 anos, começou a fazer xilogravura sem saber que a técnica tinha esse nome. Nunca teve quem lhe ensinasse o ofício da impressão ou da arte, tampouco teve influência de nenhum artista. Ele já fez cerca de 10 mil xilogravuras e quando se espantam com a sua fértil imaginação, ele diz que simplesmente expressa o rico universo nordestino, com seus personagens, lendas, bichos, folclore, clima, plantas, ritmos. O mundo de J. Borges é inteiramente povoado pelo cordel. Ele nasceu ouvindo as histórias lidas pelo seu pai e quis aprender a ler para poder desfrutar desse tipo de literatura popular. Aos 20 anos, depois de ter sido pedreiro, marceneiro e pintor de parede, começou a vender cordéis de outros autores nas feiras. Logo descobriu sua verdadeira vocação. Passou a escrever os versos que, por conseqüência, lhe inspiraram as ilustrações em xilogravura. J. Borges tem total domínio sobre tudo o que se refere ao cordel. Ele cria as histórias, talha as gravuras ilustrativas em pranchas de madeira com uma faca, imprime e vende. Até a década de 70, ele carregava sua produção pelas feiras e mercados de cidades nordestinas. Hoje, a comercialização é feita no seu ateliê – uma construção acanhada nas margens da BR-232, em Bezerros. Para J. Borges, o segredo do sucesso do cordel depende do talento do seu apresentador, que recita ou canta os versos, e também do seu conteúdo, que deve ter sempre uma pitada de mentira. “As histórias mentirosas viram clássicos, passam de geração a geração”, garante. “Pavão Misterioso é um exemplo. Tem mais de cem anos e até hoje vende bem.”“Eu já menti muito para o povo”, confessa ele, cheio de humor. Ele é autor de 210 cordéis (a maioria esgotada) sobre religião, bravura, acontecimentos jornalísticos, eventos, amor. Os mais apreciados pelo povo, segundo ele, são os religiosos, com profecias apavorantes de guerra, escuridão, seca e peste. Em um deles, O Verdadeiro Aviso de Frei Damião, ele já começa mentindo ao dizer ter ido a Juazeiro do Norte (CE), onde falou com o frade, que mandou um recado para o povo. Borges nunca foi àquela cidade e ilustrou a igreja de Juazeiro com três torres, quando a verdadeira só tem uma. Sobreviver O artista assegura que o espaço do cordel não foi tomado pela TV, rádio ou Internet. O que falta, segundo ele, é gente disposta a sair pelo mundo vendendo. A receita continua a mesma de décadas e é infalível. Basta chegar, pendurar os cordéis num varal improvisado e, munido de microfone, começar a cantar os versos. “Do jeito que tem gente que lê revista, tem os que se informam através do cordel. ”J. Borges é um homem entusiasmado consigo mesmo. “Às vezes eu me viro para dentro e quando vejo de onde vim e tudo o que consegui… Quando vejo gente da melhor qualidade me admirando e gostando do que faço… eu, que nasci tão sem condição… aí me impressiono e me sinto realizado. ”Alguns episódios relembrados no livro Memórias e Contos retratam esse sentimento. Quando ele fez a sua primeira viagem aos Estados Unidos, em 1992, a convite do Museu de Arte Popular de Santa Fé, por exemplo, saiu do Recife atordoado, sem falar inglês, sem conhecer ninguém. Quando chegou lá, encontrou a pesquisadora Katarina Real, norte-americana com título de cidadã recifense, que tem livro sobre o carnaval pernambucano e o conhecia. Ela brincou: “Como é que um matuto criado nas brenhas de Pernambuco chegou aqui?” Ao que ele respondeu, cheio de orgulho: “Eu sou matuto, sou analfabeto, mas não sou burro. ”J. Borges só lamenta que a fama não tenha lhe proporcionado dinheiro. Há três meses no vermelho, não tem conseguido a receita mensal de R$ 2 mil, que representa o total de suas despesas. “Minha arte é barata”, explica. Suas xilogravuras custam de R$ 5,00 a R$ 20,00 dependendo do tamanho. As mais caras, de R$ 60,00, são impressas em papel coreano, de arroz. Cada folheto de cordel custa R$ 1,00. “Costumo dizer que sou um rico sem dinheiro, mas pelo menos nunca passei fome como artista.”

fonte:gazetaweb.globo.com