Rivalidade entre Paraíba e Pernambuco
“Os negociantes por quem corre o trato da capitania são poucos e pobres, meros feitores dos comerciantes de Pernambuco…” (Fernando Delgado Freire de Castilho, governador da capitania da Paraíba, 1799)
Para conquistar a região situada ao norte da capitania de Pernambuco, dominada até a década de 1580 pelos potiguares (que mantinham boas relações com os navegadores franceses), os portugueses precisaram se aliar aos tabajaras e organizar uma grande expedição militar, que contaria com a participação de seus novos aliados indígenas. Esta expedição partiu de Olinda e obteve uma vitória decisiva em novembro de 1585.
Neste mês, foi fundada a cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves, o primeiro nome da capital paraibana. A capitania da Paraíba, assim, emergiu como resultado de uma ação militar originária de Pernambuco, preludiando uma influência que duraria por séculos.
Era praticamente inevitável que a nova capitania estivesse à sombra de sua vizinha do sul. Segundo Horácio de Almeida, “no ano em que a Paraíba se fundou (1585), Pernambuco já ostentava uma vida faustosa em sua nascente sociedade”. Esta pujança pernambucana não demorou a pesar sobre a realidade paraibana. Em especial sob o aspecto econômico, já que, no fim do século XVI e início do século XVII, a capitania de Pernambuco se consolidou como o principal centro de produção e comercialização de açúcar na região setentrional da América portuguesa.
Àquela época, as relações comerciais entre Pernambuco e a Paraíba já eram muito intensas. Elevadíssima quantidade do açúcar paraibano era transportada para o agitado porto do Recife e quase todas as manufaturas européias destinadas à Paraíba passavam antes pela capital pernambucana. Entre a Paraíba e o mercado atlântico, Pernambuco impunha-se como um poderoso intermediário. E o Recife, seu principal centro portuário, chegou a ser chamado nos Diálogos das Grandezas do Brasil (1618) de “Lisboa pequena” por sua exuberância e pelo vigor de seu comércio.
A invasão holandesa em nada alterou tal situação. Pelo contrário: os invasores acentuaram ainda mais aquela submissão. A Paraíba passou a ser governada por um diretor nomeado pela Companhia das Índias Ocidentais, cujos altos funcionários haviam se estabelecido no Recife.
O Recife, aliás, concentrava o crédito judaico-holandês tão necessário aos produtores de açúcar de todo o Brasil setentrional e, nas palavras de Adriaen van der Dussen, alto funcionário da companhia de comércio holandesa, era “o lugar onde está o principal porto para toda a classe de navios, onde estão todos os negócios, onde a Companhia fixou a ‘sedem belli’, onde estão estabelecidos os armazéns gerais de artilharia, de munições, de víveres e de mercadorias”.
Não é difícil entender, então, porque foi ali que se realizou, em 1640, uma assembléia onde estavam presentes representantes de todas as capitanias sob controle holandês. O Recife era o grande centro econômico e político a que estavam submetidas todas as regiões conquistadas pelos holandeses (entre estas, a Paraíba).
Após a expulsão dos holandeses, a influência pernambucana sobre a Paraíba, que já era bastante avultada, continuou crescendo. Os paraibanos, sofrendo com os problemas gerados por tamanha influência, expressavam abertamente sua insatisfação. Segundo Elza Regis de Oliveira, várias foram as queixas “sobre a falta de moedas na Capitania, atribuindo-se o fato ao seu fluxo para a Capitania de Pernambuco, onde os moradores adquirem mantimentos”.
Esta submissão, porém, era tão aguda que os próprios paraibanos, muitas vezes, faziam questão de preservar suas relações comerciais com o porto recifense. Um estudo de Wilson Seixas mostra que em 1665, por exemplo, uma Carta Régia determinou que os produtos agrícolas paraibanos seguissem diretamente para os portos de Portugal, “sem serem sujeitos ao monopólio dos mercadores de Pernambuco”. A maior parte dos paraibanos, porém, recusou-se a obedecer.
Em 1675, “chegou outra [Carta Régia], reforçando, por assim dizer, a órdem (sic) régia anterior”. Mais uma vez, foi impossível fazer os paraibanos cumprirem tal ordem. Em 1686, o governo metropolitano, sem ter como eliminar a influência recifense, recuou, revogando as Cartas Régias que proibiam o transporte de gêneros paraibanos para Pernambuco.
A submissão paraibana, com o passar dos anos, provocou crises sérias entre as duas capitanias. Matias de Albuquerque (1657-1663), Pedro Monteiro de Macedo (1734-1744) e Luís Antônio de Lemos Brito (1753-1757), governadores da Paraíba em épocas diversas, enviaram ao governo metropolitano reclamações contra a conduta indevida dos seus colegas de Pernambuco, que afrontavam os direitos paraibanos.
Alguns historiadores acreditam que havia uma ambição expansionista pernambucana, que teria amadurecido principalmente na primeira metade do século XVIII. Para Elza Regis de Oliveira, por exemplo, “tudo indica que houve desejo de expansão de Pernambuco sobre as ‘capitanias do Norte’. E a Paraíba, pela contigüidade de seu território com o de Pernambuco, não deixava de ser cobiçada”.
Se havia realmente o interesse pernambucano de anexar a capitania da Paraíba, o objetivo foi alcançado em 1755, quando o governo metropolitano – movido pela visão centralizadora do Marquês de Pombal – resolveu pôr a Paraíba sob o controle do governo pernambucano.
Entre 1755 e 1799, o cargo de governador da Paraíba foi reduzido a limitadíssimas funções administrativas, a ponto de ser considerado mero título honorífico. Desta forma, a capitania de Pernambuco estava livre para agigantar sua influência e podia impor aos paraibanos o que lhe fosse conveniente. Uma destas imposições é citada por Glacyra Lazzari Leite: em 1797, o governador de Pernambuco determinou aos paraibanos que uma carga de mandioca deveria acompanhar cada quatro cargas de algodão transportadas para os portos pernambucanos. A proporção depois passou para uma carga de mandioca a cada duas de algodão. O governo pernambucano tentava, assim, resolver o problema de falta de farinha na sua capitania.
A oportunidade de restaurar a autonomia política paraibana surgiu no fim do século XVIII, quando o governo metropolitano – cada vez menos apegado ao ímpeto centralizador do período pombalino – questionou ao governador da Paraíba, Fernando Delgado Freire de Castilho, se aquela situação deveria ou não ser mantida. Em sua resposta, Freire de Castilho deixou claro que a Paraíba não havia sido beneficiada em nada com a subordinação a Pernambuco. Suas declarações foram acatadas pelo governo metropolitano e, em 1799, chegou ao fim o domínio pernambucano.
Foi um notável êxito para os que defendiam uma maior autonomia da Paraíba em relação a Pernambuco. Mas a situação não havia se alterado radicalmente. Persistia uma considerável submissão paraibana. No Recife estava o porto que tanto atraía o comércio da Paraíba e os capitais que sustentavam, em grande parte, a agricultura paraibana. Três grandes insurreições que tiveram início no Recife – a Revolução de 1817, a Confederação do Equador de 1824 e a Revolução Praieira de 1848 – rapidamente repercutiram na Paraíba, levando-a a se sublevar também. O grande objetivo dos estudantes paraibanos era transferir-se para Pernambuco e ingressar na Faculdade de Direito do Recife. Estas são algumas evidências que dissipam qualquer dúvida sobre a continuidade da dependência paraibana.
Por outro lado, no século XIX aguçou-se a luta dos paraibanos para escapar a tamanha influência de Pernambuco. Para se alcançar tal objetivo, importantes iniciativas foram levadas adiante, como a construção de um porto em Cabedelo e de uma estrada de ferro que o ligasse ao interior paraibano. Foram iniciativas que surtiram efeito e, no fim do século XIX, embora a influência pernambucana não tivesse sido completamente erradicada, a Paraíba havia dilatado bastante sua autonomia.
Após a proclamação da República, os paraibanos passaram a buscar com ainda mais afinco sua autonomia e uma acirrada rivalidade chegou a deteriorar consideravelmente as relações entre os dois Estados. Na década de 1920, a Paraíba foi favorecida por contar com políticos altamente talentosos como João Pessoa, José Américo de Almeida e Epitácio Pessoa, que combateram acerbamente a influência pernambucana.
Após 1930, a crescente industrialização do país também repercutiu na Paraíba, que conheceu um certo desenvolvimento econômico. A capital paraibana, beneficiada por tal desenvolvimento, passou por um processo de urbanização e, desbancando o Recife, finalmente tornou-se a cidade de maior influência sobre o interior do Estado. João Agripino, na década de 1970, foi o último governador da Paraíba a chocar-se abertamente com os interesses pernambucanos para defender a autonomia de seu Estado. É interessante atentar para o fato de que a rivalidade entre a Paraíba e Pernambuco – muito acirrada, por vezes – é um fenômeno normal entre regiões vizinhas. Afinal, a contigüidade territorial gera questões delicadas e que nem sempre são resolvidas de forma unanimemente satisfatória. Mas a proximidade entre paraibanos e pernambucanos também produziu laços de fraternidade extremamente firmes entre estes dois povos e levou-os a formar um patrimônio cultural praticamente idêntico dos dois lados do limite que os divide. São povos irmãos (e, como é comum acontecer entre irmãos, desentendem-se uma vez ou outra). Como disse Mário Melo, em 1953, “pernambucanos e paraibanos nasceram juntos, criaram-se juntos e unidos hão de sempre viver”. Apesar de suas querelas, ressalte-se.
Fábio S. Santa Cruz (fsscruz@terra.com.br) é graduado (Bacharel e Licenciado) e Mestre em História pela Universidade de Brasília (Unb), atualmente cursa doutorado em História na Universidade de Brasília (UnB) e ministra aulas de História do Brasil na Universidade Estadual de Goiás (UEG). Já escreveu artigos para a revista História Viva (Duetto Editorial) e participou de pesquisas históricas organizadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).