Neste “Panorama de Folião”, quando toda a cidade vive o Carnaval, ruas becos e avenidas estão tomados por imagens de tribos coloridas de caboclinhos, cortejos de nações africanas, singulares La Ursas despertando a curiosidade da criançada, troças e clubes de frevo deixando nos seus rastros a poeira da multidão saltitante, bois tangidos por Mateus e Bastião, espelhos multifacetados do Reisado Imperial, bandos de mascarados povoando de risos coloridos a paisagem que, ao chegar a madrugada, parece ser embalada pela imensa poesia dos blocos cantando. Ao colorido das imagens vem integrar-se batidas sincopadas de bombos dos maracatus, estalidos de preacas dos caboclinhos, ritmos rurais dos acordeões a fazer dançar as La Ursas. Cômicas toadas do Mateus do bumba-meu-boi acompanhadas pelo balançar ritmado de um ganzá. Notas agudas e dissonantes dos metais das fanfarras de frevo, cantos uníssonos de foliões a encher de alegria ruas e salões, integrados à cadência dos frevos-canções de Capiba. O Carnaval do Recife, “o Carnaval mulato do Recife”, pintado pelo poeta Ascenso Ferreira, é único em todo o mundo. Para Luiz Câmara Cascudo, “o Carnaval dos grupos e dos ranchos, das escolas de samba do Rio de Janeiro não é o Carnaval do Recife, o Carnaval da participação coletiva na onda humana que se desloca, contorce e vibra na coreografia, a um tempo pessoal e geral do frevo, com a sugestão irresistível de suas marchas-frevo pernambucanas, insubstituíveis e únicas”. Vários ritmos estão a encher de sons esta festa, mas nenhum deles é portador da força potencial que tem o frevo, em fazer vibrar as multidões e se expandir além das fronteiras. Denominado inicialmente de marcha e posteriormente de marcha carnavalesca pernambucana, ou simplesmente marcha-frevo, esta invenção do Carnaval do Recife tem sua origem no repertório das bandas musicais aqui existentes na segunda metade do século XIX. A modinha, o maxixe, o tango brasileiro, a quadrilha e, mais particularmente, o dobrado e a polca, fundiram-se, dando como resultado o frevo pernambucano, gênero musical e coreográfio, o passo, ainda hoje em franca evolução, e cujo primeiro registro vem aparecer na edição do Jornal Pequeno de nove de fevereiro de 1907. Dois gêneros de frevo vieram a tomar conta das ruas, a marcha-frevo, puramente instrumental, depois denominada frevo-de-rua, e o frevo cantado, chamado simplesmente de marcha, derivado da ária e depois conhecido como frevo-canção. No início dos anos vinte, porém, começaram a surgir no Recife os blocos carnavalescos, que assim vieram acrescentar ao mosaico cultural mais um gênero na então família do frevo: a marcha de bloco. Trazendo uma introdução sacudida e vibrante, bem à moda das alegres jornadas dos pastoris, seguindo-se do acompanhamento de um coro de vozes femininas, a marcha-de-bloco era o complemento que estava a faltar ao frevo instrumental, marcha-frevo e o frevo cantado das ruas do Recife, Olinda e de outras cidades. Ao contrário dos clubes carnavalescos, originados de grupos de trabalhadores urbanos ou de vizinhos de um mesmo subúrbio, o bloco carnavalesco surgiu das reuniões familiares dos bairros da Boa Vista, Santo Antônio e São José, espalhando-se pelas então povoações da Torre, Tejipió afogados, Encruzilhada, Beberibe, Madalena, Zumbi e Rosarinho, como uma extensão dos presepes e procissões da queima da lapinha tão em voga na sociedade da época. O bloco carnavalesco proporcionava, assim, as condições de segurança para que as senhoras e moças de família viessem participar do Carnaval de rua do centro do Recife, longe de se misturar com a massa popular frevolenta seguidora dos clubes pedestres. O conjunto era formado por homens e mulheres exibindo o mesmo tema de fantasias: camisas e vestidos coloridos, em tecido da mesma padronagem, chapéus de palha para os homens e flores nos cabelos para as mulheres. Abrindo o préstito um cartaz, o flabelo, em forma de grande leque, com o nome do bloco. O “passo rasgado”, tão comum no acompanhamento dos clubes carnavalescos, não tinha ambiente nos blocos, mas tão somente uma evolução bem ao gosto dos presepes e pastoris familiares, responsáveis pelas procissões do queima da lapinha. O primeiro deles veio a ser chamado Bloco das Flores Brancas, depois passando a Bloco das Flores e seguido de um pretenso rival, o Bloco da Saúde da Mulher. O bloco, que tinha sua sede na Rua Imperial, tornou-se famoso pelo concurso do renomado compositor Raul Moraes (1891-1937) que, segundo noticia o Diário de Pernambuco em vinte de fevereiro de 1924, era responsável por grande parte do seu repertório. Na mesma época foram fundados o Batutas da Boa Vista, no Pátio de Santa Cruz, e o Bloco da Concórdia, para o qual o seu fundador, o festejado Nelson Ferreira (1902-1976), compôs em parceria com J. Borges Diniz a marcha Borboleta não é Ave, conforme noticia o Diário de Pernambuco em sua edição de primeiro de fevereiro de 1922. Sem qualquer menção aos seus autores, Borboleta não é Ave veio a ser a primeira marcha de Carnaval do Recife divulgada em disco pela Casa Edson do Rio de Janeiro (Odeon nº 122.384), numa gravação do famoso Baiano (Manuel Pedro dos Santos) com o Grupo do Pimentel para o Carnaval de 1923. O bloco carnavalesco foi a fórmula que caiu no gosto da classe média do Recife nos anos vinte, como se deduz do depoimento de Apolônio Gonçalves de Melo (Antologia do Carnaval do Recife) e da marcha Valores do Passado, composta por Edgard Moraes (1904-1974) em 1962, e veio a dar origem a marcha-frevo-de-bloco responsável pela melhor parte da poesia do nosso Carnaval, capaz de despertar a exclamação do poeta Ascenso Ferreira: “que imensa poesia do blocos cantando!”. Foi também uma marcha-de-bloco o primeiro frevo-de-bloco que se transformou em sucesso do Carnaval brasileiro: Evocação. Composição de Nelson Ferreira, gravada pelo coral do Bloco Batutas de São José, em selo Mocambo, nº 15.142, para o tríduo momesco de 1957, ainda hoje cantada em qualquer festa carnavalesca de Norte a Sul de imenso país-continente. Com suas orquestras de pau e cordas, acrescida em nossos dias com saxofones, bombardinos e trompetes, a acompanhar um coro de vozes mistas (antes o coro era somente de vozes femininas), os blocos carnavalescos são hoje a mais forte expressão do Carnaval informal do Recife e de Olinda. Ao som de suas marchas contagiantes, de poéticas e alegres estrofes, o bloco desperta no seu passeio todo o sentimentalismo que jaz escondido nos corações dos foliões. Para a sua passagem, abrem-se à folia “janelas e portões, varandas e sobrados magoados corações” (J. Michiles), de modo a alegrar a cidade colorida, repleta de luzes e tomada por risos dourados, pintados em faces de alegres bandos que deixam o povo com prazer cantando. No seu passeio o bloco está a se misturar com ritmos, coreografias e costumes desta “Pátria do Carnaval”, deste reino da alegria governado pelo Rei Momo e a Princesa Folia, povoado por bonecos gigantes, endiabrados palhaços, maracatus de baque virado, caboclos-de-lança, plumas de caboclinhos, fanfarras de metais arrastando multidões em frevedouro, de modo a transformar as ruas do Recife e de Olinda num pandemônio indescritível. Embalados por essas melodias, estamos a viver as emoções de um Carnaval, levando para as ruas os melhores fluidos da alegria dessa gente buliçosa, possuidora daquele estado de graça bem próprio dos habitantes deste Reino Azul. Não somente de adultos é formada esta multidão frevolenta, mas de crianças e adolescentes, que estão a renovar com sua inocência e juventude a alegria dos nossos cordões, o mesmo acontecendo com as marchas produzidas a cada ano por compositores das mais diversas idades. O que esta gente buliçosa deseja é tão somente divertir o Carnaval, alegrando as ruas com o seu cantar, evocando velhos e novos frevos, compostos para os Blocos das Flores, Pirilampos, Apôis-Fum, Bobos em Folia, Sabido não Grita, Um Dia Só, que brilharam no passado, e mais recentemente para o Inocentes do Rosarinho, Banhistas do Pina, Batutas de São José, Madeira do Rosarinho, Rebeldes Imperial, Flor da Lira de Olinda, seguidos de outros mais novos pertencentes ao Carnaval informal, como Pierrots de São José, Aurora de Amor, Nem Sempre Lily Toca Flauta, Ilusões, além deste que é a inspiração maior de todos nós, com lugar de destaque nesse “Panorama de Folião”, denominado por Edgard Moraes de Bloco da Saudade. *Leonardo Dantas Silva é jornalista e historiador
Texto retirado do livro Saudade Vai Passar, de 1995, produzido por Humberto Vieira e Cláudio Almeida, sobre o Bloco da Saudade.
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