Memorial Pernambuco – Cultura, História e Arte

PERNAMBUCANOS DA GEMA

Artes Plásticas

Carlos Estêvão
Caricaturista, nasceu no Recife, em 14 de julho de 1921. Criou charges para as revistas O Cruzeiro e Diretrizes e foi, também, colaborador do Diário da Noite e O Jornal. Morreu em Belo Horizonte, Minas gerais, em 1972 . Criador do Dr. Macarra, Carlos Estevão durante quase 30 anos assinou duas páginas de legítimo humor brasileiro naquela que foi a mais importante revista do país nas décadas de 40 a 60: O Cruzeiro. Estevão, que chegou ao Rio em 1941, com vinte anos, vindo de Pernambuco, encontrou abrigo aqui, por indicação de Augusto Rodrigues, primeiro no Diário da Noite, depois em O Jornal e, finalmente na O Cruzeiro. Seu traço logo libertou-se da influência de Rodrigues para ganhar vôo próprio. À caricatura política preferiu a de costumes e foi para esta, o avesso de J. Carlos, cuja sombra se erguera soberana por toda a primeira metade deste século. Se em J. Carlos predominava o humor delicado, quase ingênuo, aliado ao desenho limpíssimo, que num único movimento definia toda a figura, em Carlos Estevão era o jogo de sombras, o desenho carregado, do nanquim em traço grosso sobre o papel. Gostava das sombras e jogava com elas na textualidade de seu trabalho. Uma das suas mais notáveis criações foi a série “As aparências enganam”, onde cenas em silhuetas sugerem situações terríveis que são logo desmentidas no quadro seguinte. Carlos Estevão foi o avesso de J. Carlos também na forma como o seu humor apreendia e tratava a realidade. Em J. Carlos, o povo era visto de fora através do olhar do homem distinto e civilizado, que não se confundia jamais com ele. Carlos Estevão, ao contrário, encontra nas relações entre o homem e a mulher comuns o seu elemento. O homem que chama a mulher de patroa, nega, benzinho, etc. que algumas vezes é o bruto, o dominador e, noutras é o dominado, o traído. Não é a toa, como lembra Otacílio d’Assunção, o Ota, que seus desenhos caíram no gosto popular e eram freqüentemente fixados nas paredes das barbearias em cenas como aquela em que uma secretária diz ao chefe pelo interfone diante do sujeito furioso que distingue, através da porta de vidro, uma silhueta de mulher aos beijos com o tal chefe: “Já falei que o senhor está ocupado!… Mas ele insiste dizendo que é o marido da sua ocupação!” Estevão é o que se chamaria hoje “politicamente incorreto”. Ele se compraz em reproduzir todas aquelas situações clássicas do anedotário machista brasileiro. Pode-se dizer a seu favor, no entanto, que a forma como o seu quadro “Ser Mulher” apresentava o papel feminino na relação conjugal era tão radicalmente caricatural que talvez funcionasse como uma crítica ao machismo então reinante. Sem dúvida, o seu personagem favorito foi o Dr. Macarra, tipo de mandrião sempre a contar vantagens em situações que lembram o já citado quadro “As aparências enganam”. Em geral, seu tema são as memórias do Dr. Macarra, versão livre narrada por ele mesmo a uma interlocutora embevecida. Um exemplo é a série Dr. Macarra em Cuba. Num dos quadros ele se gaba de que em Cuba servia de exemplo à juventude. No quadro seguinte, em flash back, ele está caído numa calçada, completamente bêbado, enquanto uma mãe o mostra ao filho: Myra, hijo, los hombres que beben tequilla acaban así, cahidos en las calles. Dr. Macarra chegou a ter uma revista própria que, como toda revista do gênero no Brasil, teve vida curta. Durante o ano de 1962, foram lançados nove números da Dr. Macarra. Quando a O Cruzeiro resolveu criar a versão brasileira do L’amigo del hombre, que fazia grande sucesso na Argentina, e que aqui ganhou o nome de O Amigo da Onça, Nássara e Augusto Rodrigues não toparam, achavam que não ia colar. Enganaram-se e quem se deu bem foi o tímido Péricles (tão delicado, tão gentil que, ao suicidar-se com gás, deixou apenas um bilhete: “favor não acender fósforos”). O sucesso do Amigo da Onça, continuou, após a morte precoce de Péricles com Carlos Estevão, que foi o responsável pela página até o melancólico desaparecimento da O Cruzeiro. Como figura do humor nacional, Carlos Estevão deve ser lembrado ainda porque, depois dele, a caricatura de costumes praticamente desapareceu das grandes revistas e jornais brasileiros, suplantada pela caricatura política. Teve uma sobrevida nas páginas de O Pasquim, com Ziraldo, Jaguar e Henfil. Ressurgiu nos últimos anos através da bem inspirada Radical Chique e seu correspondente masculino, o Gatão de Meia Idade, de Miguel Paiva e nas geniais tirinhas que Angeli e Laerte, de São Paulo, mandam para alguns jornais do país. A concepção gráfica do primeiro, aliada ao texto agressivo, muito o aproximam de Estevão. Angeli pertence à geração de desenhista e ilustradores que sofreu nítida influência de Robert Crumb. E, de certa forma, Carlos Estevão, guardadas as diferenças de tempo e de lugar, compartilha com o americano Crumb algumas peculiaridades: o traço grosso; o desenho sujo; o gosto pelas sombras; a representação agressiva das relações interpessoais, notadamente as entre homens e mulheres. Bem merecia Carlos Estevão que a editora Record, que nos anos 80 se comprometeu a republicar sua obra em uma série de álbuns, da qual chegou a lançar dois, desse continuidade ao projeto. Enquanto isso, seus originais permanecem adormecidos lá em Belo Horizonte, depositados nos arquivos do jornal O Estado de Minas. Lá onde, ao que parece, foi parar toda a memória da O Cruzeiro, dos Diários Associados e, com ela, boa parte da memória do Brasil.

Fonte: Isabel Lustosa, Rio de Janeiro