O nosso espião
por JODEVAL DUARTE Tivessem as forças dos Países Baixos consolidado a ocupação de Pernambuco no século XVII, haveria vitórias para festejar, como a Batalha dos Guararapes, falariam nos heróis – entre eles Calabar – e provavelmente teriam, como contraponto, um traidor de nome Verdunc. Mas a História é contada por nós, Calabar é o traidor e de Verdunc são raríssimos os registros. Talvez pela dimensão da presença de um e outro nos capítulos dessa longa guerra, que consumiu preciosos momentos de nossa formação. Mesmo assim, uma omissão. Se outros méritos não tiver, meu primeiro romance – premiado pelo Conselho de Cultura do Recife – está servindo para resgatar essa figura interessantíssima dos primeiros momentos de ocupação holandesa do Recife. Verdunc é o nome-título do livro e, porque romance, não foi construído com a ansiedade de dissecar a presença do personagens sob a rigorosa lente da metodologia histórica, até porque não saberia como. O Verdunc imaginado em meu romance é uma figura muito distinta do guerreiro Calabar. Faz da dissimulação sua arma, da cultura a tática de combate. Bragantino, ligado, pois, aos Países Baixos, Verdunc já estava em Pernambuco quando chegaram os invasores. Pela identificação de origem, partilhou da mesa farta do comando das tropas e fez-se interlocutor de assuntos que deveriam estar sob rigorosa censura. De posse das informações privilegiadas, municiava Matias de Albuquerque, comandante das tropas nativas, e pode-se presumir que muitas das bem-sucedidas emboscadas dos primeiros momentos de ocupação se deveram ao trabalho de Verdunc. Ou Verdonck, como é grafado na extraordinária obra de José Antonio Gonsalves. Minha descoberta desse personagem foi acidental, parte da deliciosa leitura do diário de um dos soldados que vieram com as tropas invasoras. Ele registra, em meia dúzia de linhas espalhadas, a revelação, prisão e execução do traidor Verdunc. Pareceu-me, desde a primeira leitura, tipo ideal para um romance de espionagem, enriquecido pelas circunstâncias da guerra de ocupação em um período marcado por revoluções nas ciências e na cultura. De molho, o cenário mágico de bruxarias que povoavam o imaginário coletivo desde a Idade Média. Assim nasceu o romance, que se fez com espionagem, mistério, circunstâncias e muita, muita imaginação. Sem comprometer a raiz histórica de personagens que escreveram capítulos ainda em aberto de nossa formação. Ainda em aberto porque a ocupação holandesa não se integrou à nossa tradição, como costuma ser nas terras onde a cultura absorve até os piores e mais trágicos episódios da História para torná-los produto de consumo e, sobretudo, memória. Aqui padecemos do fascínio pela memória porque a luta pela sobrevivência é mais forte. O que talvez explique uma obra magnífica como a de José Antonio Gonsalves não inspirar nem enriquecer o patrimônio nacional. Não poderia pretender nunca, com Verdunc, suprir essa deformação cultural, mas a obra, pela sua simplicidade, presta-se a ocupar um espaço ao lado de outras mais densas e reveladoras de um imenso filão, como nos mostra a grande escritora Luzilá.
Fonte: Jornal do Comercio – Recife, 20 de abril de 1998 |