Três montes de perfis variados por FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO Queremos evocar um conjunto de três montes de perfis variados, guardando em comum a pobreza do solo, feito de barro e areia, e uma vegetação geralmente baixa e rala, com poucas árvores a pontilhar o manto verde que se estendia por sobre as ondulações, numa alternância de picos e grotas que as enxurradas do inverno só faziam acentuar. O encaixe estreito dos relevos faz que os espaços planos entre estes se mostrem quase nulos, embora ricos, outrora, em árvores de porte avantajado, numa exuberância vegetal que se estendia pelas campinas em volta, interrompidas, aqui e ali, pelo verde mais escuro dos alagados, o verde dos mangues que todos conhecemos tão bem no litoral do Nordeste. De muitos século, a voz do povo os batizou a cada um de maneira incerta, a passagem das gerações conspirando por tornar ainda mais precárias as designações coloniais de Barreiras, Oitizeiro e Oiteiro, sem que essa voz movediça contaminasse o conjunto das elevações, este sim, de denominação indígena invariável: Guararapes. Montes Guararapes. Sob o nome sonoro da língua dos índios que significa tambor, eles se fizeram sentinela natural do setentrião brasileiro e, dessa varanda sobre o Atlântico, a tudo assistiram desde a origem dos tempos. Viram chegar o português nos primeiros anos que se sucederam à Descoberta de 1500. Com ele, tantos aventureiros de mesma origem européia, ávidos todos pela riqueza do pau-brasil e pela adaptação posterior da cana-de-açúcar ao massapê da nossa faixa verde, de que resultaria não somente o assentamento do primeiro processo econômico de exportação, todo ele erguido por sobre o braço do escravo, senão do sistema patriarcal de relações sociais brotado à sombra do triângulo casa-grande, senzala e capela. Viram o progresso da Capitania pela afirmação rápida dos negócios privados, como viram o desespero a que foi lançado o colonizador branco quando a Coroa portuguesa, vacante por sucesso de guerra, vem a ser unificada à do Reino de Espanha em 1580, abrindo-se a nossa terra à cobiça estrangeira pelas seis décadas que se seguiram. É quando franceses e ingleses amiúdam as incursões de rapina às nossas costas, e é quando os holandeses, em guerra contra os espanhóis, premidos, em conseqüência, pela necessidade do açúcar bruto para as muitas refinarias que poussuíam à época, decidem-se pela conquita do Brasil setentrional, a se transformar em palco do que os cronistas contemporâneos chamavam orgulhosamente de Nova Holanda. Os velhos montes viram o projeto dessa Holanda tropical iniciar-se por sobre o Pernambuco florescente de 1630, com o desembarque das forças do almirante Lonck na praia de Pau Amarelo, ao norte de Olinda, não se privando de saber também do incêndio dessa cidade pelo invasor no ano seguinte, com a transferência do empreendimento colonial para as areias do Recife. Souberam da queda do Arraial Velho em 1635; da chegada do conde Maurício de Nassau em 1637; do ânimo desse regente esclarecido em deitar pontes sobre os rios e entre as pessoas, além de erguer o burgo de Maurícia, menina dos seus olhos ainda juvenis; como souberam das façanhas dos nossos capitães-de-emboscada, a aprender com o índio as astúcias da guerrilha; da epopéia de Luís Barbalho, ao retirar seu exército por 400 léguas, desde o Rio Grande até a Bahia; da restauração do trono português em 1640 e da insurreição final dos luso-brasileiros em 1645, coroada essa etapa com as vitórias sucessivas de Tabocas, de Serinhaém, do Cabo, do Pontal, de Nazaré e da Casa Forte, num crescendo que prenunciava um ajuste de contas de dimensões nunca vista na chamada Guerra de Pernambuco, que viria com as duas batalhas dos Guararapes, em 1648 e 1649. Mas antes de que a síntese histórica nos remeta aos dois reencontros máximos da guerra, cedamos espaço a considerações analíticas necessárias à compreensão dos fatos com maior profundidade. Na passagem do século XVI para o XVII, a Espanha era a grande potência do mundo, com o seu império colonial tocado à base sobretudo da prata do Peru e do México, e a dividir com Lisboa a preocupação comum da manutenção de colônias espalhadas pelo orbe. No ponto, aliás, não havia discrepância entre uma e outra das sedes imperiais peninsulares, ambas concebendo a defesa de suas posses vastíssimas como uma função exclusivamente naval. Coisa de que deveriam ocupar-se as armadas e apenas estas. Ainda mais do que a Espanha – que andara às voltas com guerras terrestre intermináveis na Europa – Portugal se deixa ficar para trás na doutrina da ação militar em terra, apostando tudo do mar. O pacto colonial vigente à época entre portugueses e sua próspera colônia do Brasil – que, na porção setentrional bafejada pelo cultivo da cana, passara rapidamente dos 66 engenhos de açúcar “moentes e correntes” em 1584, para as 144 chaminés com que se deparariam os holandeses em 1630 – não implicava apenas numa partilha da atividade econômica senão também na divisão das responsabilidades militares: à Coroa cabendo a defesa naval e ao Brasil, a resistência local, uma vez que seu as praças podiam-se sustentar à custa da população imigrada e autóctone, segundo estimava a metrópole. Com efeito, à época do início da chamada Guerra de Pernambuco, a nossa população se constituía de cerca de 95.000 almas, sendo em números de 40.000 os homens livres, outro tanto de cativos, e 15.000, o de índios aldeados. Considerado o conjunto da região, com o acréscimo, portanto, das capitanias de Itamaracá, Paraíba, Rio Grande e Ceará, esse contingente se elevava para algo em torno dos 120.000 habitantes, dos quais, cerca de 20% poderiam ser mobilizados para a ação militar. Isto, potencialmente, bem entendido, de vez que se sabe que o nosso exército oscilaria ao longo de toda a guerra em torno dos 3.000 homens. À possibilidade demográfica da organização de uma defesa militar local – como vimos – deve ser acrescida uma outra licença concedida naturalmente pelo meio físico generoso, no qual a população colonial ia buscar tudo o de que necessitava em essência para sobreviver, privando-se apenas do vinho e do azeite, num quadro logístico radicalmente oposto àquele com que se viram às voltas os invasores, dependentes em tudo das carnes curadas – do porco (presunto e toucinho), do peixe-pau (bacalhau), do arenque – do queijo, da manteiga, do trigo, dos biscoitos, dos vinhos, da cerveja, do tabaco e das aguardentes que o seu controle sobre nossas costas de mar e bocas de rio lhes permitia importar das fontes norte-européias tradicionais. No plano de saúde, ao lado da disenteria, da hemeralopia e dos vermes, um exemplo de doença ilustra bem o que se passou então. Inscientes da lição indígena da necessidade da ingestão de cajus, fruta rica em vitamina C, os holandeses foram vítimas do escorbuto, em muitos casos suas gengivas crescendo como trombas e levando o paciente a tê-las cortadas a navalha sob pena de morrer de fome. E o remédio estava muitas vezes ao alcance da mão, conhecida a abundância dessa fruta em nosso meio, da qual, aliás, é nativa. Para grande parte dos males, a farmácia era o mato. O índio, o farmacêutico. Registre-se aqui que a adaptação holandesa ao nosso trópico úmido foi penosíssima. A ênfase da política de quadros militares foi sempre a de reter aqui o soldado veterano, pouco interesse existindo quanto à vinda de adventícios. No que tange aos caminhos, à exceção das faixas de praia, eram todos péssimos. Mesmo os rios navegáveis, por correrem do oeste para leste, não acudiam a quem necessitava deslocar-se verticalmente do norte para sul ou vice-versa. E mais: na longa estação das chuvas, ofereceriam obstáculo por vezes intransponível ao viajante. Nisso os holandeses tiveram uma grande vantagem por conta do predomínio quase ininterrupto de suas forças navais em nossas costas, cabendo lembrar que testemunhos de época assinalam a vantagem de 4×1, ao comparar os dias necessários a um mesmo deslocamento por mar ou por terra. A essa dificuldade dos caminhos, deve-se acrescentar uma outra ainda mais geral e abrangente: a da própria terra, representada pelos areiais, pelo massapê encharcado, quando não mesmo pela lama, em todos os casos, solos difíceis de afeiçoar à caminhada, atoleiros, quase sempre. E se a isto juntarmos a cobertura vegetal invariavelmente densa da mata, do canavial e do mangue, teremos a explicação para o desprestígio entre nós da Cavalaria, usada vestigialmente de parte a parte e, entre os luso-brasileiros, mais para fornecer patentes consideradas honrosas, o cavalo tendo sido em nosso mundo colonial um símbolo de senhorialismo, como assinalou Gilberto Freyre. Costuma-se lembrar que duas companhias de cavalos intervieram na Segunda Batalha dos Guararapes. É certo. Mas sabem qual era seu efetivo? 40 cavaleiros, apenas. Do outro lado, talvez a maior expressão de uso dessa arma seja representada pelos 80 cavaleiros de que se acompanhava o conde de Nassau em suas incursões de conquista. Uma diferença cabe assinalar entre esses dois empregos igualmente restritos dos cavalos, por implicar em mais uma evidência ilustrativa da desatualização lusitana no tocante à guerra terrestre. É que, enquanto a cavalaria de Nassau operava com arcabuzes, clavinas ou pistolas, como era dominante na Europa desde o início do século XVII, a nossa, usava as lanças, evocativas de uma tradição já morta junto a exércitos modernos, sensíveis à revolução das armas de fogo em todos os setores da guerra. O meio natural diverso do europeu responde igualmente pelo desprestígio da Artilharia, reduzida à condição de “sério obstáculo à mobilidade das operações militares luso-brasileiras”, conforme comenta Evaldo Cabral de Mello, evocando testemunhos de coevos, quer por estorvar a marcha dos campanhistas, quer por não pagar com eficácia o esforço penosíssimo de sua condução ao teatro de luta. Em novembro de 1632, o conde Bagnuolo levou 4 peças de bronze para bater os holandeses no Forte de Orange, em Itamaracá. Decepcionado com o baixo proveito ofensivo obtido, largou as peças naquela ilha. Peso a evitar… À exceção de uns poucos, em geral os nossos fortes também denunciavam o atraso que vimos flagrando na força portuguesa de terra, no caso específico, o desenvolvimento insuficiente de nossa Engenharia militar, ademais do que, voltada esta muito mais para cobrir o risco da escalada por índios ágeis que para fazer face às peças de artilharia. As muralhas eram, assim, altas e delgadas, ao contrário da tendência moderna – e já então corrente – de expandi-las no sentido horizontal. Na dificuldade da pedra de cantaria, que tinha que vir do Reino, e do arrecife, de retirada muito penosa, o material generalizado era o que a terra ofertava em abundância: a madeira e o massapê, de cuja combinação resultava a chamada taipa. Os fortes do Brasil setentrional se erguiam quase todos em “taipa de pilão” – que é a taipa socada – sólida como pedra no estio mas a se delir perigosamente sob a chuva intensa do trópico. Raríssimo aqui os mestres de Engenharia militar, não estranha que os nossos fortes padecessem, além de tudo, da escassez de espaço nas esplanadas, quando não ausentes estas de todo, de fossos rasos e da freqüente má colocação de baluartes, de estacadas e de parapeitos. Entre nós, o forte de pedra é realidade de disseminação posterior à guerra contra os holandeses. No tocante às armas leves, a guerra representa para os nossos a travessia precipitada do arcabuz de mecha para a espingarda de pederneira, tecnologia, esta última, que o inimigo já chega aqui empregando maciçamente. O resultado pouco risonho da substituição da mecha reinol, feita de linho, pela filbra de coco local, a umidade e as chuvas excessivas da região, de par com a denúncia com que a mecha iluminante – e de odor característico – fez abortar a surpresa de tantas emboscadas, tudo foram fatores de prestígio para a pederneira junto às duas facções combatentes. Dentro desse balizamento, não será demais registrar que chegamos a usar armas de muito boa qualidade, superiores em alcance e segurança às holandesas, conforme registro de alguns de seus cronistas, a revelar a boa fase por que passava Portugal no particular. Albert Eckhout, pintor e documentalista da corte do conde de Nassau, um regente sabidamente ilustrado apesar dos apenas 32 anos de idade que contava ao chegar ao Brasil, teve o cuidado de captar numa tela a óleo de 1641, hoje no Museu de História Natural de Copenhague, um mulato combatente tendo ao ombro um moderníssimo fuzil de cargas sobrepostas – uma arma de repetição, portanto – cabendo a suposição de se tratar de homem e petrecho nossos, à vista da preocupação do pintor em apreender meticulosamente a provável novidade que lhe chegava aos olhos. De toda maneira, um bom testemunho da qualidade do armamento leve empregado na Guerra de Pernambuco, nas espécies da pistola, da clavina, do arcabuz, do mosquete ou da espingarda, e nos sistemas de mecha, de roda com pirita fagulhante ou de ou de pederneira, com as declarações mais entusiásticas reservando-se para os mosquetes biscainhos, reforçados, de calibre e alcance superiores aos similares holandeses.
Fonte: Jornal do Comercio – Recife, 20 de abril de 1998
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