As batalhas pelas terras do açúcar
por CÍCERO BELMAR
A maior autoridade sobre a história da invasão holandesa no Brasil, o professor José Antônio Gonsalves de Mello interpreta as batalhas dos montes Guararapes como sendo uma luta de interesse pelas terras dos canaviais em Pernambuco. Não chegou a ser uma defesa da Pátria, porque esse sentimento ainda era incipiente, no seu entender. O professor, de 82 anos, forjou sua opinião em anos e anos de pesquisas baseadas em documentos trazidos da Holanda para Pernambuco pelo professor José Higino, no século XIX. Os estudos o levaram a escrever um dos clássicos da História do Brasil, “Tempo dos Flamengos”. Autor de 30 livros e de outras 182 publicações, entre artigos e prefácios, José Antônio Gonsalves de Mello foi condecorado pela rainha Juliana, da Holanda, em 1972, como Oficial da Ordem Orange-Nassau, pelos estudos da dominação holandesa no Brasil. O Instituto Histórico Brasileiro considera-o como o maior historiador vivo do Brasil. /
*- As duas batalhas dos Guararapes representam o primeiro momento da consciência do povo como Nação?*
*R *- Não foi o primeiro momento. Antes houve outras batalhas importantes. O que aconteceu, na minha opinião, foi uma luta dos luso-brasileiros por sua terra. Foi o momento culminante dessa consciência de luta pelo que era deles. Mas, o Exército Brasileiro diz que ali, nas batalhas, nasceu de fato a sua organização militar. Elas foram o início da formação militar. Os brasileiros compreenderam, naquele momento, que tinham o poder físico para vencer um exército estabelecido, organizado, armado, com boas armas e comando experiente.
*- Pode-se resumir as duas batalhas como sendo a luta pelo domínio das terras dos canaviais?*
*R *- Sim. O açúcar foi quem trouxe os holandeses para cá. A Capitania era muito importante para a Holanda, que tinha grandes refinarias em Amsterdan. O produto para refino era o açúcar, que eles exportavam, pois estavam na entrada da Alemanha. Era um mercado de açúcar muito grande. Aqui, poucos deles foram donos de engenho. Mas, eles tinham grande interesse pelo produto.
*- Na sua opinião foi uma luta patriótica?*
*R *- Não, tanto que a iniciativa das duas batalhas foi dos holandeses.
*- Para ambas as partes a pátria valia menos do que as terras dos canaviais?*
*R *- Ainda não havia um sentimento de pátria, embora muitos dos que lutaram já tivessem nascido aqui. Os índios comandados por Felipe Camarão e o negros por Henrique Dias foram colaboradores importantes, mas eram colonos de uma propriedade portuguesa.
*- As duas batalhas foram uma vitória da raça brasileira?*
*R *- No século XVII já havia uma raça brasileira? Hoje pode-se falar em raça brasileira, mas naquele tempo não havia essa consciência de nacionalidade, na minha opinião.
*- Então, a principal conseqüência das duas batalhas foi apenas a organização militar dos brasileiros?*
*R *- Não foi só militar, mas foi principalmente militar. Não vejo conseqüências políticas. Os brasileiros perceberam que tinham condições de defender o seu território, mesmo com uma ajuda pouco numerosa do poder colonial.
*- O brasileiro estava praticamente sozinho na luta, sem o apoio de Portugal?*
*R *- Realmente estava, pois teve pouca ajuda nesse sentido. O destino do Brasil, na época, estava dependendo de uma negociação entre Portugal e Holanda.
*- No período, negociava-se uma saída diplomática para desocupação da Capitania?*
*R *- Houve uma ou duas tentativas de compra e venda da Capitania. Padre Antônio Vieira queria indenizar a Holanda para a retirada das suas tropas. Nesse caso, Pernambuco ficaria com Portugal.
*- A que o senhor atribui as vitórias dos luso-brasileiros nas
duas batalhas, já que eles enfrentavam uma tropa muito mais forte?*
*R *- Os holandeses eram mais bem armados, mas os brasileiros tinham armas que os holandeses temiam muito. Eram armas pontiagudas, como facas e espadas. A arma de fogo, para ser carregada, exigia quatro ou cinco minutos, o que é muito tempo no momento da batalha. Além disso, a estratégia de batalha levou em conta a largura da passagem entre os pés dos montes e o mangue. O local das duas batalhas era a passagem obrigatória para o sul da capitania. Era muito estreito e os holandeses não tinham como desdobrar o seu exército. Não havia condições de usar toda a sua força na frente da batalha. A superioridade militar holandesa foi dificultada pelo local, como já tinha ocorrido nas Tabocas.
*- Foi o oportunismo contra a técnica militar?*
*R *- A maioria dos soldados holandeses era de mercenários de várias nacionalidades que viviam disso, empregando sua força. Os luso-brasileiros não eram militares, mas civis que se associavam a tropas regulares existentes no Brasil. Diante disso, podiam cometer alguns excessos, alguns exageros.
*- Que exemplo as gerações atuais podem depreender desse período da História do Brasil?*
*R *- Acho que o principal é a consciência de que o Brasil merece ser defendido tanto do ponto de vista militar quanto civil.
*- O senhor acha que as gerações atuais têm pouco interesse por esse período da história brasileira?*
*R *- Em geral, as novas gerações não têm muito interesse por essa história militar. Os locais de batalha são pouco visitados e também foram ocupados. Acho que, de um modo geral, falta interesse pela História, infelizmente. Mas, seria um motivo honroso a todos brasileiros e pernambucanos terem alcançado duas vitórias contra um poder militar.
*- Quando o senhor escreveu “Tempo dos Flamengos”, qual foi o seu sentimento em relação ao período holandês no Brasil?*
*R *- Confesso que me envaideceu muito o período holandês, em especial os anos do governo do Conde Maurício de Nassau. Foi um homem excepcional, que trouxe consigo pintores, artistas, cientistas para registrar o que havia de novo nos trópicos para a Holanda, para a Europa. Ele teve a iniciativa de construir a Cidade Maurícia, seus palácios, suas pontes, seu parque botânico e a sua atitude de contemporização com os naturais da terra e aqueles que não professavam a religião reformada holandesa.
*- Como o senhor escreveu o “Tempo dos Flamengos”?*
*R *- Eu fazia pesquisas desde 1933. Ajudei nas pesquisas iniciais para Gilberto (Freyre) escrever “Casa Grande e Senzala”. Desde aí comecei a me interessar pela história dos holandeses no Brasil. Visitava o arquivo do Diário de Pernambuco e também o Instituto ( Arqueológico Pernambucano, fundado em 1862). Eu já era sócio do Instituto e ficava além do horário normal de abertura da sede. Foi um longo trabalho de pesquisa, que exigiu, inclusive que eu estudasse a língua holandesa. Já sabia falar alemão e isso me facilitou aprender holandês, pois são línguas germânicas. Meus professores foram o padre Henrique, da Várzea e o padre carmelita Bonifácio Harnk. Esse estudo me permitiu manusear cópias de documentos que foram feitos na Holanda, sob a direção do professor José Higino (professor da Faculdade de Direito do Recife, que morreu em 1901, no México). A coleção de documentos do Instituto é muito grande. Tem correspondências, atas do governo holandês do Brasil, entre outras coisas. E eles contam o dia-a-dia na capitania, os problemas, as soluções. Concluí o livro em 1943. Gilberto (Freyre) escreveu o prefácio em 44. Mas, a editora (José Olympio) estava publicando livros com muito cuidado. Era tempo de guerra. O livro só foi publicado em 1947. Fonte: Jornal do Comercio – Recife, 20 de abril de 1998 |