Os SONS do RECIFE |
Do alto do edifício Engenho da Torre, ainda em construção, cá estou eu contemplando o Recife. Daqui, do antigo e antes bucólico bairro, me é dado a vislumbrar os Montes Guararapes, as terras da Várzea, as matas de Aldeia e o rio Capibaribe, seguindo o seu curso através das antigas povoações de Apipucos, Poço da Panela, Santana, Jaqueira, Ponte D’ Uchoa, Madalena, contornando a ilha de Joana Bezerra em busca do mar. É tudo o que se pode vislumbrar desta minha torre de observação… Quase tudo, para sermos mais precisos, pois o mar, este verde mar que banha às praias do Recife e Olinda, não nos é dado contemplar. Uma pequenina nesga de mar ainda pode ser vista, através de uma pequena brecha, ainda existente por entre a muralha da selva de pedra que se formou no meu hoje triste horizonte. Um verdadeiro anel de cimento armado está a isolar os bairros da zona norte e oeste do mar, provocando mudança na vida dos seus habitantes sem que nem eles tenham uma explicação para os fenômenos que vieram modificar hábitos do dia-a-dia de um passado não muito distante. A muralha de concreto primeiramente nos privou da brisa; aquela brisa da qual tinha saudades o poeta Manuel Bandeira ao sentir se sentir sufocado pelo calor do Rio de Janeiro: “…No Nordeste faz calor também. / Mas lá tem brisa:/ Vamos viver de brisa, Anarina”. A brisa que nos era trazida pelos alísios a soprar do sudeste quase não mais existe, o mesmo acontecendo com o vento terral que, nas madrugadas, com a sua garoa cobria de orvalho as flores da antiga campina da Torre e a vegetação rasteira da primitiva cerâmica, chegando até a toldar com a sua névoa o leito do Capibaribe e as bucólicas ruas desprovidas de calçamento. Através daquela brisa, a mesma que sustentava o vôo dos nossos papagaios de papel, nos chegavam os sons do Recife que, sem saber, estavam a marcar as nossas vidas. Os sons da cidade, gerados num raio de 6 quilômetros, nos anunciavam o trem de Maceió partindo na madrugada; a entrada no porto dos navios da Mala Real Inglesa, do Lóide, da Costeira; o trem de Itabaiana; o trem de Salgueiro; o badalar dos sinos das igrejas da Torre, das Graças ou do Cordeiro, a nos chamar para as orações e a dizer às crianças que era hora de tomar a bênção aos mais velhos… As horas eram anunciadas pelos apitos das fábricas de tecidos da Torre, Capibaribe, da Macaxeira ou do Zumbi; hora de acordar, de ir para a escola, de encerrar as aulas, de terminar com os brinquedos, de deitar…. O nosso dia-a-dia, das cinco da manhã às dez e meia da noite, era marcado pelos apitos daquelas fábricas.
Das ruas nos chegavam os pregões, a despertar interesses vários em mulheres, homens e crianças:
“Ma-ca-xeira! Macaxeira rosa! É rosa e baía…”; “Piii-tom-ba! Chora meniiino pra comprá pitomba!”; “Sor-ve-te! Sor-ve-te! É …de maracujá!”; “Coceira! Quem tem coceira?!”; “Prata! Prata e ouro! Compra-se ouro quebrado… Prata e ouro!”; “Mun-gu-zá! Tá quentinho!”; “Baaa-ta-ta! Bata doce, rainha!”; “Mi-úudo!…Miudeiro!”; “Va-ssou-ra! Va-ssoureiro! .. Espanador, vasculador, colher de pau, esteira de angola, rapa-coco e gréia!…”; “Algodão doce!…”; “Ja-po-nês! Doce japonês!”…; “Diário e Comércio! Jor-na-leiro!”; “Mé nôô-vo! Mé novo de engenho!”; “Ver-du-rei-ro! Ba-na-na prata madurinha!”;
“Gua-ra-ju-ba! Ô guarajuba!”…
E seguiam-se o apito do homem do cuscuz, do amolador de tesouras, a corneta do picolé e, de tempos em tempos, a algazarra dos moleques incentivada pelo palhaço do circo Edson, ou de qualquer outro que viesse armar a sua empanada na campina da Torre: “O raio do sol/ Suspende a lua/ Olha o palhaço/ No meio da rua/ Hoje tem espetáculo/ Tem sim senhor!/ Oito horas da noite/ Tem sim senhor!/ O palhaço o que é?!!!/ É ladrão de mulher!”…. E assim se passaram os anos naquela bucólica rua do bairro da Torre, que o cinturão de concreto dos edifícios e o trânsito dos automóveis hoje sepultou.
Fonte:www.fundaj.gov.br |