Vivencial Diversões |
Herança do mais polêmico grupo teatral pernambucano se mantém viva na produção artística do Recife |
Fábio Coelho, Leonardo, Américo Barreto e Auricéia Fraga
em Viúva Porém Honesta, de Nelson Rodrigues
Rodrigo Dourado Especial para o DIARIO
Mosteiro de São Bento, Olinda, 1974. Diversos jovens ligados à Pastoral da Arquidiocese de Olinda e Recife se reúnem para celebrar o sucesso de suas atividades nas paróquias da cidade histórica. Nasce, então, o espetáculo Vivencial I, colagem de textos de Jean Genet, Bertolt Brecht e do noticiário da Imprensa, primeira célula subversiva do que viria a ser o Grupo Vivencial Diversiones. O espetáculo causa enorme furor e acaba sendo proibido pelo abade. Os jovens levam sua montagem para o Teatro do Bonsucesso e lá alcançam inesperada projeção. A montagem desperta o interesse de boa parte da intelectualidade marginal recifense e permanece dois meses em cartaz. Desde aquele 25 de maio, 30 anos se passaram. Mas a herança do Vivencial Diversiones se mantém viva na produção artística da cidade. A partir de Vivencial I, surgiu o mais polêmico grupo teatral pernambucano. Pelas mãos de Guilherme Coelho, ex-seminarista e diretor da maioria dos espetáculos, a trupe acabou se tornando uma trincheira da marginalidade,abarcando toda sorte de excluídos. O estilo colagem predominou nas primeiras montagens. Genesíaco, Conversa de Botequim, Madalena em Linha Reta, Auto de Natal, O Pássaro Encantado na Gruta do Ubajara e Vivencial II tilizavam o noticiário como material dramatúrgico por excelência. Mas, para além da colagem, o que o Vivencial fez foi imprimir ao palco pernambucano feições pós-modernas, traduzindo teatralmente o fragmentário do nosso tempo. O Vivencial foi, na verdade, uma manifestação tardia do tropicalismo. Graças a um forte intercâmbio com Jormad Muniz de Britto, grande porta-voz da movimentação tropicalista no Recife. Esse namoro, no entanto, lhe rendeu um inimigo: o Armorial. Assim, mais que um espaço de experimentação tropicalista, o Vivencial se tornou uma trincheira na guerra contra Ariano Suassuna e seu projeto artístico. Com as montagens de Sobrados e Mocambos (1976) e Viúva, porém Honesta (1977) o grupo conseguiu levantar capital para adquirir uma casa de espetáculos no Complexo de Salgadinho, em Olinda. A aquisição permitiu uma melhoria nas produções, graças à presença de um público cativo. Repúblicas Independentes, Darling (1978), As Criadas (1979), Notícias Tropicais (1980), All Star Tapuias (1980) e Os Filhos de Maria Sociedade (1982) são montagens que já estrearam no Café-teatro. Pelo Café-teatro passaram inúmeros ícones da cultura brasileira: Gilberto Gil, João Silvério Trevisan, entre outros, e grandes nomes da cultura local, como Alceu Valença, Luís Maurício Carvalheira e uma série de artistas de teatro. A aquisição da sede e sua transformação num espaço da moda permitiram também que o grupo ganhasse projeção nacional. A montagem de Repúblicas Independentes, Darling, viajou pelo Brasil através do Circuito Mambembão/Mambembinho. fonte: (© Pernambuco.com) Uma escola para o transformismo Viveca. É assim que carinhosamente se chamavam os integrantes gays do Vivencial Diversiones. O termo, utilizado até hoje pelos mais saudosistas, reflete um dos aspectos mais marcantes da produção do grupo: o transformismo. Graças à sua orientação plural, o Vivencial tornou-se um reduto de homossexuais, fazendo escola no Recife. Na década de 90, a montagem de Cinderela, a Estória que sua Mãe não Contou (Trupe do Barulho) foi considerada legítima herdeira do Vivencial por muitos que ali identificavam a estética do grupo olindense e, especialmente, por ser o texto de autoria de um ex-integrante do Vivencial: Henrique Celibi. Mas é preciso notar que o “desbunde” e a estética gay estão associados ao Vivencial já em sua última fase, quando da tentativa de Américo Barreto de reacender sua chama. O “boom” gay dentro do Vivencial inicia-se com a abertura do Café-teatro. Lá as apresentações tinham horários diferenciados. Às 20h, aconteciam os espetáculos do grupo. Às 23h, os shows musicais. À meia-noite artistas recitavam poemas e faziam apresentações ao improviso. Por volta das 2h ou 3h da madrugada, os transformistas comandavam. Bonecas falando para o Mundo (espetáculo em duas versões) e diversos números individuais encantavam e divertiam a platéia, com performances de Lou Island, Severina Xique-Xique, Luciana Luciene e Paulete Gorda, entre outras, dublando e interpretando ícones da MPB e do show business. O diálogo com o universo noturno dos transformistas foi contaminando gradualmente as montagens, até que o “desbunde” se instalasse. Américo Barreto é o grande responsável por essa fase. Ele já havia montado As Criadas, com três homens representando personagens femininas. Também chegou a abrir em Natal, e Belém, filiais do café-teatro (Henrique Celibi fez o mesmo em Fortaleza). Com seu retorno, a casa foi reaberta seguindo essa orientação. Ao lado de Fábio Costa, Celibi e Pernalonga, ele montou Rola Skate (1981), Nós Mulheres (1981) e a Revista Oba Nana … Fruta do Meio (1982), utilizando a figura do homossexual como personagem-central das produções. A focalização dessa figura era um processo que já havia acontecido com a revista, gênero que trabalha com a tipificação (“O Malandro”, “O Caipira”, etc.), umas das influências do Vivencial. A figura da “Mulata” revisteira foi sendo substituída pela do transformista, como no show Les Girls (1965), no Rio de Janeiro, que lançou a famosa atriz Rogéria. Não é de surpreender, portanto, que o mesmo acontecesse no Vivencial. Mas sua temática francamente homoerótica também estava associada à produção de grupos como o Teatro do Ridículo, nos EUA, e Dzi Croquettes, no Brasil. Logo, é interessante observar o quanto o transformismo exercitado dentro do Vivencial se manifesta ainda hoje na noite e no tablado recifense. Vale registrar a bela homenagem que está sendo feita pelo espetáculo Angu de Sangue (Teatro Hermilo Borba Filho), no qual é exibido um vídeo intitulado Perna. Nele, mostra-se a trágica história da Viveca (Pernalonga) assassinada por um assaltante em 2000 e que teve o socorro negado por ser soropositivo. Percebe-se que a influência do Vivencial está presente em todo o espetáculo, confirmando a idéia de que o grupo é um divisor de águas no teatro pernambucano. fonte: (© Pernambuco.com) Entrevista – Guilherme Coelho DP – Como era o clima do início do Vivencial? Guilherme Coelho – O movimento teatral em Pernambuco sempre foi muito efervescente, principalmente comparado com outras capitais brasileiras, ontem e hoje. Em 1974 era bastante diversificado, mas não o suficiente para que o Vivencial marcasse e fizesse a diferença entre tantos bem comportados grupos de teatro, que iam do TUCAP ao TAP passando pelas bucólicas periferias, o Vivencial se fazia o avesso do avesso do avesso. DP – O que existia de tão subversivo que fez o abade proibir as apresentações? Guilherme – Era um manifesto que tratava de dar respostas aos condicionamentos culturais e assim atacava todos os tótens e tabus vigentes. E para isso lançava mão de textos proibidos e censurados. O Abade não sabia de que se tratava, permitiu que estreasse no galpão do colégio, mas no terceiro espetáculo não foi mais possível e a temporada foi para o Teatro do Bonsucesso. A intelectualidade de plantão soube e se encarregou de divulgar e mostrar que havia algo depodre no reino da Dinamarca e que quebrava o bom comportamento a assepsia da cena pernambucana. DP – O que você pretendia ao juntar os jovens excluídos em suas encenações? Guilherme – Os jovens excluídos só vieram depois. No início eram jovens das mais diferentes classes sociais que gravitavam nos movimentos de evangelização dos paróquias de Olinda, e como todo jovem, loucos para dizer e fazer algo. O grupo sempre primou pela diversidade social, formal, sexual e religiosa. Quando o grupo se instalou nas cavalariças do Barão de Tacaruna, hoje Salgadinho-Ponte Preta, é que se ampliou e trouxe os profissionais da noite para o glamour da ribalta, dando qualificação e visibilidade a um talento que so o submundo tinha chance de privar. DP – Suas montagens pulsantes estavam baseadas em quê? Guilherme – O que se respirava era subversão. O Brasil estava sob o AI5 e só os malucos tinham coragem de desequilibrar e fazer guerrilha urbana de pintas, o pulsar vinha dos gritos presos na garganta e daí o grupo se apropriava de qualquer texto que pudesse oferecer uma leitura que desconstruísse o cotidiano e através de metáforas atacava tudo e todos… DP – Como era materializado o antagonismo entre o Vivencial e o Movimento Armorial? Guilherme – Amin Steple arregimentava o Bloco Carnavalesco Armorial Siri na Lata e só em ouvir falar que o bloco ia sair os vivenciais todos aderiram… Como costumávamos não deixar nada sem resposta, era o movimento Armorial lançar algo, nós já fazíamos a réplica e tréplica. Mas isso não só ao Armorial, mas a todas as manifestações da cultura oficial, que sempre deu panos para as mangas a quem deseja inclusive fazer humor… Eu particularmente acho o movimento Armorial um luxo, mas tudo que é avante e que empunha bandeira recebe flechadas e cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é… Uma escola para o transformismo Viveca. É assim que carinhosamente se chamavam os integrantes gays do Vivencial Diversiones. O termo, utilizado até hoje pelos mais saudosistas, reflete um dos aspectos mais marcantes da produção do grupo: o transformismo. Graças à sua orientação plural, o Vivencial tornou-se um reduto de homossexuais, fazendo escola no Recife. Na década de 90, a montagem de Cinderela, a Estória que sua Mãe não Contou (Trupe do Barulho) foi considerada legítima herdeira do Vivencial por muitos que ali identificavam a estética do grupo olindense e, especialmente, por ser o texto de autoria de um ex-integrante do Vivencial: Henrique Celibi. Mas é preciso notar que o “desbunde” e a estética gay estão associados ao Vivencial já em sua última fase, quando da tentativa de Américo Barreto de reacender sua chama. O “boom” gay dentro do Vivencial inicia-se com a abertura do Café-teatro. Lá as apresentações tinham horários diferenciados. Às 20h, aconteciam os espetáculos do grupo. Às 23h, os shows musicais. À meia-noite artistasrecitavam poemas e faziam apresentações ao improviso. Por volta das 2h ou 3h da madrugada, os transformistas comandavam. Bonecas falando para o Mundo (espetáculo em duas versões) e diversos números individuais encantavam e divertiam a platéia, com performances de Lou Island, Severina Xique-Xique, Luciana Luciene e Paulete Gorda, entre outras, dublando e interpretando ícones da MPB e do show business. O diálogo com o universo noturno dos transformistas foi contaminando gradualmente as montagens, até que o “desbunde” se instalasse. Américo Barreto é o grande responsável por essa fase. Ele já havia montado As Criadas, com três homens representando personagens femininas. Também chegou a abrir em Natal, e Belém, filiais do café-teatro (Henrique Celibi fez o mesmo em Fortaleza). Com seu retorno, a casa foi reaberta seguindo essa orientação. Ao lado de Fábio Costa, Celibi e Pernalonga, ele montou Rola Skate (1981), Nós Mulheres (1981) e a Revista Oba Nana … Fruta do Meio (1982), utilizando a figura do homossexual como personagem-central das produções. A focalização dessa figura era um processo que já havia acontecido com a revista, gênero que trabalha com a tipificação (“O Malandro”, “O Caipira”, etc.), umas das influências do Vivencial. A figura da “Mulata” revisteira foi sendo substituída pela do transformista, como no show Les Girls (1965), no Rio de Janeiro, que lançou a famosa atriz Rogéria. Não é de surpreender, portanto, que o mesmo acontecesse no Vivencial. Mas sua temática francamente homoerótica também estava associada à produção de grupos como o Teatro do Ridículo, nos EUA, e Dzi Croquettes, no Brasil. Logo, é interessante observar o quanto o transformismo exercitado dentro do Vivencial se manifesta ainda hoje na noite e no tablado recifense. Vale registrar a bela homenagem que está sendo feita pelo espetáculo Angu de Sangue (Teatro Hermilo Borba Filho), no qual é exibido um vídeo intitulado Perna. Nele, mostra-se a trágica história da Viveca (Pernalonga) assassinada por um assaltante em 2000 e que teve o socorro negado por ser soropositivo. Percebe-se que a influência do Vivencial está presente em todo o espetáculo, confirmando a idéia de que o grupo é um divisor de águas no teatro pernambucano.